A disputa acirrada pela presidência da Argentina chegou ao futebol. Nesta semana, alguns dos principais clubes do país deixaram suas rivalidades de lado e uniram-se em um posicionamento unânime contra a adoção do modelo de Sociedades Anônimas Desportivas (SADs), que funcionariam em um sistema similar aos das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), atualmente em vigor no Brasil.
Enquanto por aqui as SAFs foram aceitas com entusiasmo por diversas torcidas, no país vizinho a reação foi contrária. A polêmica surgiu no último fim de semana, depois que uma entrevista concedida em 2022 pelo candidato oposicionista de direita Javier Milei, de La Libertad Avanza (LLA), foi resgatada e passou a circular nas redes.
No vídeo, Milei defende a adoção, na Argentina, do modelo em vigor na Inglaterra, onde empresas são proprietárias de times. O político também disse ser a favor das SADs.
“Prefere continuar nessa miséria que temos, de um futebol cada vez mais de pior qualidade? Como estamos cada vez que saímos da Argentina?”, afirmou o hoje candidato, um mês antes do início da Copa do Mundo do Catar 2022. A seleção alviceleste acabaria sagrando-se campeã do torneio.
As horas seguintes à divulgação desse material foram marcadas por uma forte reação dos clubes argentinos, que divulgaram notas e posts nas redes sociais ou em seus sites oficiais, repudiando as SADs e reafirmando suas condições de associações civis sem fins lucrativos.
River Plate e Boca Juniors
O River Plate, time com a segunda maior torcida do país, foi além e realizou uma assembleia de representantes dos sócios para rechaçar a adoção das SADs no futebol argentino. Além disso, conclamou as demais agremiações a defenderem “o modelo sob o qual os clubes foram concebidos no país, em que os sócios decidem sobre o destino da instituição a que pertencem”.
Equipe mais popular entre os argentinos, o Boca Juniors divulgou uma nota oficial em sua página, criticando a proposta de Milei, mas sem citá-lo. Um dado curioso é que o clube xeneize tem forte relação com Maurício Macri, ex-presidente da Argentina, que, no segundo turno desta eleição, declarou voto no candidato de direita, contra o peronista Sergio Massa, da Unión por la Patria. A votação será no próximo domingo (19). Macri presidiu o Boca no período entre 1995 e 2008.
“A vida do Boca Juniors está intrinsecamente ligada ao lugar onde nasceu, cresceu e assumiu a dimensão que hoje o tornou um movimento popular reconhecido no mundo. Por isso, estará sempre comprometido com a realidade social onde desenvolve suas atividades esportivas e culturais. Convencido do papel transcendente desempenhado pelos clubes na Argentina desde o início do século passado, o Boca Juniors é contra qualquer iniciativa que implique sua privatização ou venda”
Comunicado oficial do Boca Juniors sobre a questão das SADs
Trauma
Os dois clubes mais populares da Argentina não foram os únicos a se manifestar sobre o tema. O Independiente, maior vencedor da Copa Libertadores em todos os tempos, também se posicionou acerca da polêmica nas redes sociais. Citando um trecho de seu estatuto social, o time afirmou que pertence a seus sócios e sócias e que nunca alterará sua figura jurídica.
Uma das manifestações mais contundentes veio do Racing, maior rival do Independiente, que não deixou de fazer menção a um forte trauma relacionado a esse tema. “Ninguém tem de nos explicar o que significa SAD num clube de futebol. Nossos sócios e torcedores, que restauraram a democracia para o Racing, sabem bem disso”, afirmou o clube na postagem.
De 2000 a 2008, o clube branco e celeste adotou o modelo de concessão, que poderia ser descrito como um meio-termo em relação às SADs. À época, as gestões do futebol do Racing e de seu estádio, El Cilindro, foram entregues por um período determinado a uma empresa privada, a Blanquiceleste S.A., que acabaria engatando diversos pedidos seguidos de falência, embora tenha ajudado o clube a conquistar o Apertura de 2001, seu primeiro troféu depois de uma fila de mais de 30 anos.
O San Lorenzo foi outro que rechaçou as SADs. Em 2001, o clube esteve em vias de adotar o modelo de concessão, mas a forte pressão de seus torcedores impediu o negócio de ser fechado.
Peronismo
Na opinião de Ary José Rocco Júnior, professor e pesquisador da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/USP), o posicionamento quase unânime dos clubes argentinos, contrários ao modelo das SADs, reflete a cultura política do país sul-americano, fortemente influenciada pelo peronismo (de Juan Domingos Perón, fundador do Movimento Nacional Justicialista, que exerceu a presidência em três mandatos, entre 1946 e 1974, totalizando dez anos no poder).
“Esse pensamento político está muito baseado em conceitos de justiça social e de forte apoio aos trabalhadores. Isso, de uma certa forma, faz com que, lá, qualquer coisa que esteja relacionada a uma postura mais liberal ou ao capital seja vista como nociva para a sociedade”, explicou o especialista.
A discussão em torno das SADs na Argentina ganhou contornos curiosos, pois a proposta tem sido taxada, em alguns meios (inclusive na nota oficial do Boca Juniors), como uma tentativa de privatização do futebol, mesmo com os clubes associativos sendo instituições privadas.
“Sabemos que os clubes de futebol não são públicos. Mas, tanto na Argentina quanto no Brasil, são associações que assumiram características muito semelhantes à de uma organização pública. Ou seja, há um grupo político eleito para administrar o dinheiro de outros (dos sócios, no caso). E acredita-se que, por fazer parte do quadro de associados, esse grupo político representaria todo mundo da mesma forma e poderia fazer o melhor uso desse dinheiro, o que pode não ser verdade, necessariamente. Basta ver o que acontece nos clubes de futebol, no Brasil e na Argentina, onde a situação é pior, porque existe uma participação muito forte das torcidas organizadas”, ponderou Rocco Júnior.
Profissionalização
O especialista considera que a profissionalização dos clubes deveria preceder a discussão sobre qual modelo administrativo deve ser adotado.
“O clube não precisa se transformar numa SAF para profissionalizar a gestão. Flamengo e Palmeiras são exemplos disso, embora eu ainda tenha muitas críticas quando dizem que esses dois clubes profissionalizaram a sua gestão. Mas é evidente que deram passos nesse sentido, como equacionar a dívida e colocar profissionais de mercado à frente de áreas importantes, mesmo ainda sendo entidades associativas”, afirmou.
Ele também lembrou que o fato de funcionar como Sociedade Anônima não é garantia de que o time se profissionalizará.
“Podemos ver muitos casos em que o modelo adotado foi de SAF, mas o clube continua funcionando como se fosse uma entidade associativa, só que agora com dono. Temos vários exemplos nesse sentido, basta olhar para a tabela do Campeonato Brasileiro. Por outro lado, existem várias equipes que viraram SAF e isso trouxe uma profissionalização da gestão”, destacou.
Por fim, Rocco Júnior considera que a questão da profissionalização é fundamental para o futuro do futebol.
“Quem não profissionalizar sua gestão, seja SAF ou seja clube associativo, vai ficar fora do mercado e, consequentemente, vai perder capacidade competitiva”, finalizou.