De muitas maneiras, o futebol brasileiro virou a página de 2014 em 2019. Como se pudéssemos esquecer, nosso futebol ficou de joelhos com a humilhação dos 7 a 1 em 2014, combinado com o maior escândalo de corrupção que o futebol já viu e que atingiu os principais dirigentes do futebol brasileiro e mundial em 2015, no caso “Fifagate”. Desmoralizado, dentro e fora do campo, nosso futebol se apequenou. Entretanto, a gravidade da crise não foi logo percebida, em toda sua dimensão, porque a chegada, logo em seguida, do Rio 2016, serviu em grande medida para tirar muito do foco da gigantesca crise que atingiu nosso futebol pós-Copa.
Enquanto o foco da mídia e da população se voltava para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, todos números do nosso futebol caíam. Público nos estádios, número de patrocinadores (que batiam em retirada para evitar verem suas marcas associadas à corrupção), e audiência na TV refletiam o desencanto dos fãs com o esporte. No campo, os resultados não eram melhores. A Seleção Brasileira, desta vez sob o comando de Dunga, acumulava maus resultados. Quanto aos clubes, após ganharmos a Libertadores da América por quatro anos seguidos (2010 a 2013) ficamos sem títulos até 2017. Na Europa, a década de Messi e Cristiano Ronaldo ofuscava o brilhantismo dos jogadores brasileiros naquele continente, mesmo com a chegada de Neymar ao Barcelona.
De repente, o futebol brasileiro se fragilizou dentro e fora do campo como nunca. Para piorar ainda mais o cenário, surgiu outro fantasma: a competição crescente do futebol europeu no mercado brasileiro. Os ingredientes são conhecidos: craques famosos, calendário competente, torneios cobiçados com forte apelo e farta transmissão na TV brasileira fizeram, e ainda fazem, que cada vez mais fãs daqui se tornem também fãs de lá, inclusive nascendo uma nova geração de jovens brasileiros que se dizem torcedores exclusivos de times europeus.
Neste cenário de terra arrasada, a crise do futebol brasileiro pós 2014 só não foi ainda maior por causa da entrada repentina da Caixa. No período de 2014 a 2018 a Caixa chegou a patrocinar 35 clubes entre grandes, médios e pequenos, e esse enorme fluxo de receita minimizou, mas não impediu, que as dívidas da maioria destes clubes aumentassem ainda mais.
A entrada da Caixa, assim como o grande número de clubes patrocinados, gerou muita polêmica, principalmente entre torcedores de times não-patrocinados pelo banco. O grande questionamento era: “por que estatal tem que investir em esportes”? Evidentemente, isso não resiste a uma análise sequer superficial. O Banco do Brasil e o vôlei brasileiro têm uma parceria histórica de grande sucesso. Até hoje a marca Lubrax gera valor de mídia de um patrocínio do Flamengo de mais de 40 anos atrás. Ayrton Senna no começo de sua carreira teve o patrocínio do Banerj, então banco estatal do RJ. Ao mesmo tempo, o patrocínio estatal tem ajudado enormemente o esporte olímpico brasileiro. E, sem dúvida, a Caixa ganhou uma enorme visibilidade no futebol que acabou gerando números estratosféricos de valor de mídia. Em paralelo, o volume de negócios financeiros gerado com os clubes, em forma de contas bancárias, folha de pagamento de jogadores e funcionários, cartões de crédito, seguros e empréstimos consignados geraram retorno ao banco.
Se por um lado o patrocínio da Caixa foi benéfico ao banco, pelo lado dos clubes, entretanto, o resultado é menos obviamente conclusivo. Com toda certeza o dinheiro da Caixa ajudou nas contas de seus clubes patrocinados. Fica até difícil projetar como estaria a saúde financeira do nosso futebol sem as centenas de milhões de reais da Caixa. Por outro lado, o dinheiro da Caixa acabou atrasando a necessária e inevitável busca pela eficiência, transparência e boa gestão de muitos clubes.
A realidade é que, por muitos anos, a dependência do dinheiro fácil e farto dos fornecedores de material esportivo, das vendas de direitos de TV e patrocínio, muitas vezes sem grandes contrapartidas, ajudou a perpetuar a gestão amadora, e muitas vezes ineficiente, do modelo associativo de muitos clubes. Gerir com dinheiro fácil, mesmo que seja em forma de adiantamentos de receita futura, não é tão difícil.
Enquanto esse ecossistema resistia, os clubes também resistiam em se modernizar. Entretanto, num espaço de poucos anos, tudo mudou. O dinheiro da TV diminuiu e passou a depender, em parte, do desempenho no campo. Ao mesmo tempo fornecedores de material esportivo passaram a impor um modelo de parceria onde grande parte da receita aos clubes é condicionada às vendas de produtos. E a saída da Caixa gerou um mercado comprador onde o valor dos patrocínios baixou e as contrapartidas aumentaram.
De repente, o modelo que sustentou, por décadas, a gestão associativa amadora dos clubes ruiu. E a diferença de performance, dentro e fora dos gramados, entre os clubes com gestão eficiente e os clubes sem gestão eficiente ficou grande demais para não ser percebida, principalmente pelos torcedores. Antes fruto exclusivo da visão de poucos dirigentes, profissionalismo, eficiência e transparência se tornaram de repente condições necessárias não apenas ao sucesso, mas também à sobrevivência dos clubes.
Comparo o processo de profissionalização dos clubes à uma prova de maratona. Ao contrário dos 100 metros rasos, onde todos corredores largam e chegam muito próximos uns dos outros, o processo de gestão eficiente e transparente dos clubes de futebol se parece mais com uma maratona: existe um pequeno grupo que lidera a corrida, um bloco maior intermediário, e um menor grupo que fica pata trás. O progresso de cada corredor, ou de cada clube, não é igual. Alguns estão na frente, outros mais atrás. Mas, felizmente, todos correm na mesma direção.
Em 2016, num congresso nacional de esportes, afirmei que a profissionalização da gestão do futebol seria inevitável por conta de duas forças: a pressão dos patrocinadores neste sentido e a cada vez maior diferença de desempenho esportivo entre os clubes bem a mal geridos. Naquele momento de crise, acreditava que as marcas iriam pressionar os clubes e federações por eficiência e transparência, e que isso salvaria o futebol brasileiro. Ao mesmo tempo, previa que os clubes bem geridos iriam se distanciar dos outros, e que este distanciamento iria precipitar um inevitável processo de melhora geral da gestão do nosso futebol.
Estava certo. Mas também estava errado!
Sim, as marcas, principalmente grandes marcas internacionais, demandam, ou mesmo exigem, gestão eficiente. Ao mesmo tempo os frutos de boa gestão são cada vez mais sentidos. Entretanto, o que tem dado mais resultado neste processo é a pressão da torcida. O ano 2019 será lembrado como o ano em que o torcedor passou a demandar, senão exigir, eficiência nas decisões dos gestores. O torcedor, hoje, discute com autoridade os salários pagos aos jogadores e treinadores, valor e quantidade de patrocínio nos uniformes, a comunicação dos clubes, a qualidade de conteúdo e interatividade nos perfis sociais e, principalmente, qualidade das gestões.
Além do debate sobre jogadores, esquemas táticos, ou como o time jogou, o orçamento do clube e como dirigentes gastam o dinheiro passou também a ser discutido, muitas vezes emocionalmente, por torcedores. O mesmo torcedor que poucos anos atrás exigia um time campeão em campo a qualquer custo, hoje quer uma gestão eficiente e transparente.
Ficou claro que gestão campeã inevitavelmente leva a um time campeão. Os exemplos recentes estão aí para qualquer um ver. Clubes com melhor gestão estão se destacando e ganhando títulos. Por outro lado, clubes com gestão irresponsável e ineficiente acabam do outro lado da tabela.
Do lado de baixo!
Evidentemente, nada disso seria possível sem a digitalização da sociedade e, por extensão, dos esportes. Ao contrário do torcedor analógico que não tinha poder de mídia, o torcedor digital hoje tem um protagonismo sem precedentes, e usa esse poder midiático para pressionar o clube como nunca.
Seria a democratização do futebol?
Dados de nosso monitoramento de mídias sociais dos torcedores brasileiros mostram que a cada ano cresce o percentual dos posts que comentam sobre gestão, e não resultados em campo. Em 2019 esse percentual passou de 20%. Há 3 anos atrás esse mesmo percentual não chegava a 1%. No caso dos posts de botafoguenses, por exemplo, a discussão do projeto Botafogo S/A foi, disparado, o grande tema em 2019.
Há muito o que se comemorar em 2019. Números históricos de público nos estádios. Números históricos de audiência do esporte na televisão. Números históricos de engajamento de fãs em mídia social. Número e diversidade de patrocinadores aumentando significativamente. Os torcedores, de novo, de bem com a seleção brasileira por conta do sucesso na Copa América. Torneios emocionantes e técnicos estrangeiros reciclando o futebol brasileiro. Tudo positivo!
Mesmo assim, 2019 vai ser lembrado como o ano em que o torcedor brasileiro finalmente aprendeu que gestão eficiente traz resultados, traz glórias. Esse mesmo torcedor também aprendeu que falta de gestão inevitavelmente leva ao caos. Pode demorar, mas leva! Essa conscientização é o passo fundamental no processo de profissionalização do futebol brasileiro. O que faltava!
Essa foi, mais do que qualquer outra, a Maior Vitória do Futebol Brasileiro em 2019.