A Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF

Existência da CNRD ecoa os anseios da Fifa de que as federações nacionais estruturem órgãos de resolução de disputas com jurisdição em seus respectivos territórios - Divulgação

Na última coluna que escrevi neste espaço, tratei das competências do Tribunal de Futebol da Fifa, concluindo que elas se vinculam “diretamente ao caráter internacional da disputa”. Considerando que boa parte dos litígios existentes no futebol têm dimensão nacional e, portanto, não se sujeita ao crivo do Tribunal de Futebol da Fifa, hoje abordarei um órgão que tem se revelado de extrema importância no sistema do futebol brasileiro desde sua criação: a Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD).

A CNRD é um órgão independente na estrutura organizacional da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), estabelecido em conformidade com o estatuto da entidade. Sua competência, organização, atuação, funcionamento e procedimentos são regulados especialmente pelo Regulamento da CNRD, cuja edição atual foi publicada em setembro de 2022.

Vale ressalvar que a CNRD não integra a Justiça Desportiva. Esta última, nos termos da Constituição Federal e da Lei nº 9.615/98 (a “Lei Pelé”), é responsável pelo processamento e julgamento de infrações disciplinares e às competições esportivas, aspectos que não se inserem no rol de atribuições da CNRD. O Superior Tribunal de Justiça do Futebol também é um órgão independente na estrutura organizacional da CBF, porém que não se confunde com a CNRD.

O estabelecimento de uma câmara no seio da entidade nacional de administração do futebol para o processamento de demandas predominantemente relacionadas a aspectos patrimoniais, transferências e registros não se dá por acaso. A bem da verdade, a existência da CNRD ecoa os anseios da Fifa de que as federações nacionais estruturem órgãos de resolução de disputas com jurisdição em seus respectivos territórios, a fim de permitir aos atletas, treinadores, clubes e intermediários/agentes que resolvam seus litígios no âmbito do próprio sistema do futebol organizado.

Em um evento recente em São Paulo (SP), o presidente da CNRD apresentou números expressivos e crescentes relativos ao volume de casos submetidos à CNRD, revelando a clara adesão dos stakeholders do futebol brasileiro ao órgão como foro eficiente para dirimir seus litígios. De fato, ainda que não esteja imune a críticas e aperfeiçoamentos, a CNRD atende bem aos anseios da Fifa e às necessidades de seus jurisdicionados ao oferecer ao menos duas vantagens em relação à Justiça Comum: maior especialização dos julgadores em relação às matérias afetas ao futebol (sobretudo no que tange aos regulamentos da CBF e da Fifa) e a possibilidade de aplicação de sanções esportivas.

Esse último aspecto, aliás, replica o modelo adotado também no âmbito Fifa e já tratado aqui neste espaço: o prejuízo de um clube ao sofrer um transfer ban (proibição de registro de novos jogadores), ficando impedido de reforçar seu plantel, usualmente o compele a cumprir a decisão da CNRD que o tenha condenado ao pagamento de valores a outro clube, a um atleta, a um treinador ou a um intermediário. Mas vale frisar que essa não é a única ferramenta à disposição da CNRD: em meio a diversas consequências aplicáveis em caso de descumprimento de suas decisões, destaca-se também a possibilidade de bloqueio de receitas decorrentes de participação e/ou premiação em competições.

Isso não significa, contudo, que qualquer credor possa se utilizar da CNRD para buscar a satisfação de seu crédito. O rol de pessoas físicas e jurídicas jurisdicionadas da CNRD (portanto, aptas a figurar como partes em processos perante esse órgão, sem prejuízo da verificação de sua legitimidade no caso concreto) é limitado e se encontra definido no artigo 2º do Regulamento da CNRD: federações; ligas de futebol vinculadas à CBF; clubes; atletas; intermediários registrados na CBF; e treinadores e demais membros de comissão técnica. É importante notar, aliás, que se incluem nesse rol, além dos atletas e treinadores brasileiros que atuam no Brasil, aqueles brasileiros atuando no exterior e os estrangeiros registrados na CBF. Essa última hipótese, portanto, confere à CNRD competência para processar e julgar disputas de dimensão internacional em casos específicos.

Mas não basta que a parte seja jurisdicionada. É necessário também que a disputa se amolde a pelo menos uma das competências previstas no artigo 3º do Regulamento da CNRD. Dentre elas, algumas mais recorrentes merecem destaque especial.

A primeira encontra-se definida no inciso XI do artigo 3º: litígios “sobre os quais haja convenção de arbitragem elegendo a CNRD para dirimi-los”. Sem adentrar em detalhes mais técnicos, o ponto central dessa norma diz respeito à liberalidade das partes envolvidas (desde que jurisdicionadas da CNRD) de definir em contrato a CNRD como órgão competente para resolver potenciais litígios. Nessa mesma linha, outra espécie de disputa sob a competência da CNRD igualmente requer o comum acordo entre as partes: aquela de natureza laboral, seja entre clubes e atletas (inciso II do artigo 3º) ou entre clubes e membros de comissão técnica (inciso VII do artigo 3º).

Portanto, o exercício das competências específicas acima referidas relaciona-se diretamente à previamente mencionada adesão do mercado (isto é, dos clubes, atletas, treinadores e intermediários) à CNRD.

Por outro lado, o Regulamento da CNRD prevê também competências de natureza associativa, decorrentes da adesão dos stakeholders do futebol aos regulamentos da CBF. O principal exemplo é a hipótese de que trata o inciso III do artigo 3º: litígios “acerca da aplicação do art. 64 do RNRTAF”.

O artigo 64 do Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (RNRTAF) consolida que “é dever dos clubes cumprir, tempestivamente, as obrigações financeiras devidas a atletas profissionais, técnicos de futebol e outros membros de comissão técnica, ou a outros clubes, nos termos dos instrumentos que entre si avençarem e formalizarem”. Assim, em caso de inadimplemento de obrigações financeiras por parte de um clube, o respectivo credor (desde que seja um atleta profissional, membro de comissão técnica ou outro clube) pode efetuar a cobrança do valor devido perante a CNRD, independentemente do contrato indicá-la como órgão competente pela resolução de conflitos.

Enfim, são essas múltiplas possibilidades que reafirmam a CNRD como órgão importante de resolução de disputas, notadamente aquelas concernentes a aspectos contratuais e pecuniários. Consequentemente, revela-se essencial aos profissionais que atuam no futebol brasileiro conhecer o básico sobre suas atribuições e o seu funcionamento, e aos advogados atuantes perante a CNRD que tenham conhecimento sobre seu procedimento, cujas diversas especificidades não cabem nestas linhas de hoje, e serão tema para outro dia.

Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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