Nos últimos dias, o meio do futebol se deparou com a notícia do falecimento de Mino Raiola. Um dos mais proeminentes intermediários (também comumente referidos como “agentes” ou “empresários”) do mundo. Tendo assessorado atletas do naipe de Ibrahimovic, Pogba e Haaland dentre tantos outros, Raiola se tornou um dos símbolos dessa atividade que possui papel cada vez mais importante no futebol. E a triste notícia trouxe à tona o papel exercido pelos intermediários no futebol moderno. À medida que o esporte se desenvolve como negócio, movimentando cifras elevadíssimas, esses profissionais assumem crescente relevância na assessoria a clubes e atletas em meio a negociações contratuais.
A atuação de um intermediário no futebol é regulada por dois sistemas jurídicos distintos. Um deles é aquele correspondente ao direito estatal, composto pelas normas emanadas do Estado e diretamente aplicáveis em seu território – no Brasil, são exemplos a Constituição Federal, o Código Civil, o Código Tributário Nacional e a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98, que institui normas gerais sobre o desporto). O outro denomina-se Lex Sportiva, se relaciona especificamente com a forma pela qual o esporte se organiza (conforme já expusemos aqui) e é composto pelas normas emanadas das entidades que administram o futebol organizado (em especial a FIFA em nível transnacional). Portanto, todo e qualquer intermediário deve ter em conta que o exercício de suas funções deve se dar sempre em conformidade com os preceitos estabelecidos em ambos os sistemas – sendo certo, inclusive, que uma eventual atuação em outros países demanda a aplicação de regras pertinentes àquele território.
Em se tratando de Lex Sportiva, o ponto de partida é o Regulations on Working with Intermediaries (“RWI”). Editado em 2015 pela FIFA, esse normativo encontra-se ainda em vigor (ao menos na data da publicação deste texto), mas em vias de ser substituído por uma nova regulamentação da FIFA sobre o tema. Ao revogar o antigo Players’ Agents Regulations, o RWI rompeu com um modelo que até então vinha sendo adotado pela entidade máxima do futebol: ao invés de manter uma atuação direta da FIFA sobre o licenciamento de agentes (até 2015 o termo tecnicamente utilizado era “agentes”, não “intermediários”), passou a regulamentar a atuação desses profissionais de forma mais abrangente, delegando às federações nacionais (no caso brasileiro, à CBF) a atribuição de detalhar essa regulamentação e administrar o registro dos intermediários.
A Lex Sportiva nos oferece, ainda, a própria definição de intermediário. Segundo o preâmbulo do RWI, intermediário é “uma pessoa física ou jurídica que, de forma onerosa ou gratuita, representa atletas e/ou clubes em negociações com vistas à celebração de um contrato de trabalho, ou representa clubes em negociações com o objetivo de celebrar um contrato de transferência“ (tradução livre). Por sua vez, o artigo 1º do Regulamento Nacional de Intermediários 2022 (“RNI”) da CBF contempla uma definição ainda mais completa:
Art. 1º – Considera-se Intermediário, para fins deste Regulamento, toda pessoa física ou jurídica que atue como representante de jogadores, técnicos de futebol e/ou clubes, seja gratuitamente, seja mediante o pagamento de remuneração, com o intuito de negociar ou renegociar a celebração, alteração ou renovação de contratos de trabalho, de formação desportiva e/ou de transferência de jogadores.
Veja-se que podem ser diversas as atuações de um intermediário: em prol do atleta, técnico ou clube; em negociações envolvendo contrato de trabalho e/ou contrato de transferência; em tratativas para estabelecimento de um novo contrato ou para renovação de um já existente. Em todas essas hipóteses, é certo que a atividade deve ser exercida sempre em conformidade com o que preconizam o RNI e o RWI.
Esses normativos impõem vedações também aos potenciais clientes dos intermediários. Destaca-se nesse sentido o artigo 42 do RNI, segundo o qual “é vedado aos clubes, técnicos de futebol e jogadores (…) fazer uso de serviços, negociar e/ou efetuar pagamentos a intermediários que não estejam registrados na CBF“. O eventual descumprimento dessa premissa por parte de um clube, por exemplo, pode ensejar a aplicação de sanções que vão desde uma simples advertência até a proibição de registrar novos atletas (popularmente conhecida como transfer ban).
Mas, como já acima exposto, os aspectos jurídicos inerentes à atividade dos intermediários não se esgotam na Lex Sportiva. Em paralelo, é indispensável a observância do direito estatal, inclusive para se assegurar a validade dos atos jurídicos praticados – e, portanto, a segurança jurídica necessária à condução do negócio.
Nesse prisma extremamente abrangente que diz respeito à incidência de normas do ordenamento jurídico brasileiro às atividades dos intermediários, o ponto de partida se dá na própria estruturação do negócio do intermediário. Uma vez que o RNI e o RWI permitem que a intermediação seja exercida tanto por pessoa física quanto por pessoa jurídica, a primeira decisão a ser tomada refere-se à escolha entre esses dois modelos de negócios. Por certo, essa decisão deve considerar aspectos jurídicos diversos, com destaque para possibilidades de planejamento tributário (isto é, estudo do formato que regularmente permita a redução da carga tributária) e para a aplicação de disposições afetas ao Direito Societário.
Em outro plano, a vida do intermediário é permeada por contratos. Não bastassem aqueles pelos quais pactua suas prestações de serviços, a atividade do intermediário pressupõe o envolvimento direto em negociações de contratos em representação aos seus clientes. Assim, é contínua a necessidade de observância do Código Civil – inclusive para evitar que se dê causa à invalidade dos contratos.
Mas o exame de validade dos contratos não se esgota no Código Civil. A própria Lei Pelé estabelece, em seu artigo 27-C, diversas hipóteses nas quais “são nulos de pleno direito os contratos firmados pelo atleta ou por seu representante legal com agente desportivo“. A norma elenca seis situações de nulidade absoluta do contrato entre intermediário e atleta, com destaque para aquela contida no inciso VI: quando o contrato versar sobre “gerenciamento de carreira de atleta em formação com idade inferior a 18 (dezoito) anos”. Significa dizer que não é válido qualquer contrato de intermediação celebrado junto a um jogador que possua menos de 18 anos e que ainda não possua contrato especial de trabalho desportivo firmado com o clube em que atua.
Essa hipótese de nulidade é replicada pela própria Lex Sportiva, mais precisamente no parágrafo único do artigo 24 do RNI. Aliás, a Lex Sportiva vai além no que tange a limitações dos intermediários em suas relações com atletas menores: o caput do próprio artigo 24 do RNI estabelece que é vedado o pagamento de comissão a um intermediário em relação a atletas com menos de 18 anos. Portanto, ainda que o contrato seja válido à luz do artigo 27-C da Lei Pelé, o intermediário não fará jus a qualquer tipo de remuneração, caso o atleta ainda não tenha completado 18 anos.
Enfim, nota-se que a prática da intermediação no futebol requer a aplicação contínua do direito sob diversos prismas e sistemas jurídicos distintos. Mais do que isso, exige-se estar sempre atento às frequentes alterações nas normas de regência: algumas delas são atualizadas periodicamente, em especial no âmbito da Lex Sportiva. Atualmente, a expectativa é pela prometida reforma da FIFA quanto à regulamentação do tema – cujas inovações tendem a alterar substancialmente as normas atualmente em vigor e, portanto, merecerão atenção especial dos intermediários (ou “agentes”) e de todos os envolvidos no mercado do futebol.
Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve bimestralmente na Máquina do Esporte