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Reputação em jogo: Quando a verdade não ganha prêmios

Denúncias de campanhas fakes, premiadas em Cannes, são sinal alarmante de que a verdade se tornou secundária diante da capacidade de gerar repercussão

Brinquedo é o 4º episódio da 7ª temorada da série Black Mirror, da Netflix - Reprodução

Brinquedo é o 4º episódio da 7ª temorada da série Black Mirror, da Netflix - Reprodução

Em um mundo cada vez mais saturado de estímulos, onde a atenção é o ativo mais disputado, a verdade tornou-se secundária diante da capacidade de gerar repercussão e este fenômeno ganhou contornos alarmantes com as recentes denúncias envolvendo campanhas falsas premiadas no Festival de Cannes Lions – o mais prestigiado palco global da publicidade.

Agências renomadas são acusadas de criar cases fictícios, superdimensionar resultados ou desenvolver ações publicitárias apenas para atender aos critérios de premiação, sem verdadeira relevância ou impacto real.

O escândalo coloca em xeque não apenas a integridade dos prêmios, mas a própria credibilidade da indústria da comunicação. Em um cenário onde a estética da ideia parece importar mais do que sua autenticidade, as fronteiras entre criatividade e fraude tornam-se perigosamente tênues. E quando essa lógica se aplica ao marketing esportivo – setor movido por paixão, fidelidade e alto envolvimento emocional – os riscos se tornam ainda mais sensíveis.

Em paralelo, tive a oportunidade de retomar o prazer agridoce de assistir o episódio Brinquedo da série Black Mirror, que está em sua sétima temporada na Netflix.

Eu já havia sido impactado e comentado sobre um outro episódio genial da mesma série, o Queda Livre, originalmente em inglês Nosedive, da terceira temporada, de outubro de 2016, ambientado em um mundo onde as interações humanas são constantemente avaliadas por meio de uma nota de 1 a 5 estrelas — e essa avaliação impacta diretamente o status social e acesso a privilégios.

Já em 2025, o tema de Brinquedo aprofunda o debate em uma camada mais intrigante ao mostrar uma criança conectada emocionalmente com uma IA que simula companheirismo, conforto e fantasia. Sim, tantos os likes como a atenção simulam o mesmo resultado emocional.

 No fim, o que era entretenimento vira manipulação — e a fronteira entre criação, apropriação e distorção é brutalmente ultrapassada. A própria Netflix desenvolveu o game Bandoletes, inspirado no episódio, dentro de seu streaming, reforçando como a interatividade com a ficção pode se tornar uma ferramenta sedutora — e perigosa.

Entre os dois momentos, de 2016 e o recente de 2025, é possível afirmar que ambas narrativas e histórias oferecem conforto emocional baseado em aprovação sem limites, mas apenas enquanto o “script” do que é exigido for atendido e quando há uma recusa ou alguma inadequação em executar funções esperadas, tudo pode ser descartado, inclusive as pessoas em questão.

Essa analogia se aplica diretamente às agências e ferramentas: se a IA não entregar “brilho”, “repercussão” ou “performance” — mesmo que ilusória — ela será descartada em prol de outra que o faça. Ética se torna secundária à estética.

A IA hoje permite que uma campanha seja inteiramente roteirizada, ilustrada e até “vivida” por modelos e vozes que nunca existiram e o problema não está na utilização desses recursos, mas nos critérios em que as mesmas são usadas e na tentação de inflar resultados, fabricar personagens sem sentido, inventar narrativas sem propósito e ainda simular dados de performance. Quando Cannes premia ideias que talvez não tenham nem sido veiculadas, o risco é que a indústria inteira comece a recompensar ilusões em vez de resultados reais.

Por outro lado, vivemos também uma era da busca implacável por métricas instantâneas, de engajamento voraz e do consumo frenético de conteúdo e muitas campanhas são julgadas pela sua viralização, e não pela sua veracidade ou capacidade de conversão real e resultados de curto, médio e longo prazos.

É mais valioso ser compartilhado do que ser verdadeiro. Essa distorção levou algumas agências a criarem ações fictícias ou não autorizadas, direcionadas apenas à obtenção de prêmios e reconhecimento. Em Cannes, peças que jamais foram veiculadas oficialmente ou cujos impactos foram inflados com dados irreais passaram a fazer parte do portfólio de medalhas.

Esse modelo perverte o papel do marketing como ferramenta de construção de confiança, já que campanhas de marketing deveriam traduzir a essência da marca, mas, ao contrário, passam a representar performances cuidadosamente roteirizadas com foco em jurados, e não no público.

No segmento esportivo, essa crise de autenticidade pode ser ainda mais grave se aplicada sem critério ou cuidado com a história e a paixão de cada torcida. Clubes, patrocinadores e torcedores formam uma tríade baseada em vínculos emocionais e se uma marca ou agência optar por uma narrativa distorcida, não é apenas a reputação que está em jogo, mas a confiança da comunidade apaixonada que sustenta o ecossistema esportivo.

Se uma campanha esportiva for premiada baseada em uma ação que nunca chegou ao público ou que exagerou nos seus efeitos, o impacto negativo é duplo: fere a credibilidade da agência e compromete a imagem do clube ou marca envolvida. O torcedor se sente enganado, e o patrocinador, manipulado. Mais que um tropeço ético, trata-se de uma quebra de contrato emocional que não tem preço que defina seu valor, pois clubes contratam agências para contar histórias reais e a confiança, como nos relacionamentos humanos, não resiste ao colapso da verdade, principalmente no esporte.

Em meio à banalização das verdades e à estetização dos impactos, a confiança se torna o bem mais valioso na contratação de serviços de comunicação. Marcas esportivas precisam de parceiros estratégicos, e não de estúdios de ficção. A reputação das agências passa a ser medida menos pelos troféus conquistados e mais pela consistência dos resultados reais entregues.

É urgente que o setor publicitário – especialmente no marketing esportivo – retome o compromisso com a autenticidade. Isso significa abandonar a tentação da vaidade institucional em prol da eficácia de verdade, onde dados, resultados e histórias sejam auditáveis, reais e consistentes.

O escândalo das campanhas fakes em Cannes é um sintoma de uma doença mais ampla: a cultura da aparência, muito presente no episódio Queda Livre, que já citei aqui, mas também pode ser um ponto de inflexão, já que a indústria publicitária precisa resgatar o seu papel como construtora de significado, não de ilusão. E no esporte, onde o sagrado valor da paixão não admite manipulação, isso é uma exigência, não uma opção.

Além disso, há um tema central negligenciado nesse debate: a proteção do capital intelectual. Campanhas reais, criadas com esforço humano legítimo e com propósito real, sim elas ainda existem e resistem, estão sendo colocadas lado a lado (ou abaixo) de simulações, sejam elas geradas por IA ou não, com resultados adulterados, desvalorizando a inteligência criativa, a originalidade e o trabalho legítimo — tanto de agências quanto de clubes, marcas e produtores culturais.

Cannes, IA e Black Mirror nos mostram que a fronteira entre inovação e manipulação é cada vez mais tênue — e atravessá-la pode custar o que há de mais valioso: a confiança. Por fim, as agências que combinam ousadia com integridade seguirão sendo indispensáveis — porque, no fim, a ideia mais poderosa é aquela que transforma sem trair a verdade e isso é possível quando a criatividade caminha lado a lado com a transparência, entregas inesquecíveis com propósito e respeito à inteligência do consumidor.

Pense nisso, até a próxima

Reginaldo Diniz é cofundador e CEO do Grupo End to End