Em tempos de aquecimento global, quando governos, corporações e as pessoas em geral voltam suas atenções para temas como meio ambiente e sustentabilidade, a Federação Internacional de Futebol (Fifa) tem divulgado, orgulhosa, que a Copa do Mundo 2022, a ser realizada no Catar a partir do próximo dia 20 de novembro, será “carbono neutro”.
A retórica, que empolga alguns, vem gerando forte questionamento por parte de especialistas em clima. A entidade máxima do futebol também vem sendo acusada, por ativistas ambientais, de promover “lavagem verde”, que seria uma forma de camuflar os reais impactos ocasionados pela Copa do Mundo.
A Fifa alega que a Copa do Mundo 2022 terá uma pegada de 3,6 milhões de toneladas de resíduos equivalentes de carbono, que serão compensados por uma série de iniciativas. Mas Mike Berners-Lee, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, questiona essa projeção.
“Fizemos uma pequena pesquisa na estimativa de pegada de carbono da Fifa e achamos que será muito mais de 10 milhões de toneladas. Serão três vezes isso, pelo menos”, afirmou o especialista, à emissora britânica BBC.
“Termo desonesto”
Na avaliação dele, o uso do termo “carbono neutro” é desonesto.
“O esquema de compensação que a Copa do Mundo escolheu não remove o carbono da atmosfera, então é um termo falso. É muito enganoso chamar isso de Copa do Mundo neutra em carbono. Eles não estão nem removendo carbono para compensar”, disse o pesquisador.
Na avaliação de Berners-Lee, a Fifa “subestimou terrivelmente” os impactos climáticos do torneio.
“A Copa do Mundo é muito importante e obrigatoriamente tem uma pegada de carbono. Devemos tentar manter isso o mais baixo possível agora. Você pode querer mover a Copa do Mundo ao redor do mundo para mostrar apoio para todas as nações do futebol, mas o Catar não é um desses. Um exemplo é a Fifa considerar que todas essas viagens [de avião] serão passagens só de ida, o que é um completo absurdo”, afirmou o especialista.
O professor e cientista climático Kevin Anderson, da Universidade de Manchester, no Reino Unido, concorda com a visão do colega e acrescenta:
“Haverá um custo humano direto para esse torneio. Esta é uma enorme quantidade de emissões para um evento esportivo. São essas emissões que terão impacto em todo o mundo. Esses grandes eventos, seja a Copa do Mundo ou qualquer outro acontecimento esportivo ou musical, você afirmar que eles são neutros em carbono é profundamente enganoso e incrivelmente perigoso.”
Publicidade questionada
A associação Notre Affaire A Tous, da França, apresentou reclamação ao órgão que regula a publicidade no país, a respeito da suposta “lavagem verde” que estaria sendo feita pela Fifa. Queixas semelhantes por “propaganda enganosa” foram apresentadas no Reino Unido, Suíça, Bélgica e Holanda para contestar as reivindicações de neutralidade de carbono relativas à organização da Copa do Mundo do Catar.
“Quem pode acreditar honestamente que a construção de estádios com ar-condicionado no meio de um deserto pode ser neutra em carbono? Os fãs de futebol devem ser capazes de desfrutar do seu esporte sem serem feitos reféns pelas escolhas drásticas da Fifa”, declarou Jeremie Suissa, diretor executivo da Notre Affaire A Tous.
O que a Fifa alega?
Em comunicado, a Fifa alegou estar “plenamente ciente de que a mudança climática é um dos desafios mais urgentes do nosso tempo, e acredita que exige que cada um de nós tome medidas climáticas imediatas e sustentáveis”.
“Pela primeira vez, a Fifa e o país-sede Catar prometeram entregar uma Copa do Mundo totalmente neutra em carbono. Um conjunto abrangente de iniciativas foram implementadas para mitigar as emissões relacionadas ao torneio, incluindo estádios com eficiência energética e certificação de construção verde de seu projeto, construção e operações, transporte de baixa emissão e práticas sustentáveis de gerenciamento de resíduos”, afirmou a nota.
O texto também diz que “todas as emissões restantes serão compensadas pelo investimento em créditos de carbono reconhecidos internacionalmente e certificados”.
“Isso é feito de forma voluntária, liderando o caminho na indústria esportiva. Mais pode ser feito e será feito, como a Fifa se comprometeu por meio do Quadro de Esportes para Ação Climática da UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima] e de sua própria Estratégia Climática para alcançar as emissões líquidas zero até 2040”, destacou a entidade.
Jogadores engrossam críticas
Até alguns jogadores de futebol têm questionado as alegações da Fifa, caso do norueguês Morten Thorsby, que atua na Bundesliga.
“Este torneio [a Copa do Mundo 2022] é um desastre absoluto em termos de sua pegada ambiental”, disse ele, em uma carta aberta.
“Eles têm construído infraestrutura apenas para este evento, o que nunca é uma coisa boa”, diz o texto, que também é assinado por David Wheeler, do Wycombe Wanderers (Inglaterra), e as jogadoras Elin Landstrom, da Roma (Itália), e Zoe Morse, do Chicago Red Stars (Estados Unidos).
“A mudança climática é o adversário que devemos enfrentar. E já estamos no tempo extra”, afirma outro ponto da carta aberta.
Na avaliação dos atletas signatários, o fato de o torneio ter sido rotulado como a primeira Copa do Mundo totalmente neutra em carbono da história exige que seu impacto geral no planeta seja mesmo zero. O que estaria longe de ser verdade.