Na semana posterior às contratações de Kaká e Cristiano Ronaldo, o Real Madrid tomou conta do noticiário esportivo mundial. Coincidentemente, esteve no Brasil, no mesmo período, um dos membros da primeira gestão de Florentino Pérez, o dirigente que criou a primeira geração dos ?galácticos? e retornou ao poder com estilo nos últimos dias.
Eduardo Fernandez-Cantelli foi diretor de basquete do Real Madrid, e viveu de perto o processo de internacionalização da marca que levou o clube ao posto de mais rico do mundo. Em entrevista exclusiva à Máquina do Esporte, o PhD em gestão esportiva e professor do IE Business School, mostrou sua visão da política do clube merengue.
?Quando Pérez chegou ao clube [pela primeira vez], ele estava em uma situação econômica difícil, e a prioridade era a geração de receita, acima da parte esportiva. É claro que sem a parte esportiva não havia crescimento econômico, mas a prioridade era a geração de receitas?, disse Cantelli.
A visão é de um modelo espanhol de gestão. Em meio à crise financeira, o especialista apresenta a polêmica criada na Europa pelo Real Madrid, que conseguiu um empréstimo milionário para a contratação de seus novos craques.
?Os bancos não tem liquidez, não conseguem ter crédito, mas emprestaram mais de 50 milhões de euros para o Real Madrid. Isso é muito dinheiro. Então, você está produzindo uma situação complicada, que não aconteceria se o clube fosse uma sociedade anônima, porque teria de responder a esse montante com o capital de seus sócios?, disse Cantelli.
Leia a íntegra da entrevista a seguir:
Máquina do Esporte: Conte um pouco da sua visão da estratégia do Real Madrid na primeira gestão de Florentino Pérez?
Eduardo Fernandez-Cantelli: Eu sou uma pessoa muito feliz por ter vivido de perto uma época tão importante que foi a da globalização da marca Real Madrid. O interessante para entender é ver o ponto de partida, aonde estava antes de Florentino Perez antes de chegar a essa posição muito global. O Real sempre foi conhecido por ter muitos torcedores, mas nunca havia se relacionado com eles da maneira ideal. E hoje, depois de todo o processo, a realidade é que o Real Madrid tem muitos torcedores espalhados pelo mundo, muitos mais que os outros grandes clubes europeus. Naquele momento, o clube entendeu que tinha três tipos de torcedores. Aqueles que estavam mais próximos, que acompanhavam o time e tinham contato normalmente, aqueles que estavam um pouco mais distantes, mas podiam se relacionar diretamente ocasionalmente, e aqueles que estavam mais afastados. E o Real Madrid ainda não conseguia lidar com esse público que ficava mais afastado e tinha características distintas. E para isso, eles avaliaram qual era o perfil de cada mercado. Aqui na América Latina, por exemplo, os torcedores são muito mais inconográficos, ligados ao ídolo, inclusive quando ele muda de equipe. Dessa avaliação nasceu praticamente todo o processo que resultou no marketing do clube, que queria alcançar esses mercados. E então contratou-se jogadores que podiam alcançar esses mercados. E aí você consegue formar uma equipe que, esportivamente, é muito boa, e ainda carrega uma série de valores que aumentam a penetração da marca Real Madrid.
ME: O Beckham foi o ápice de marketing, mas começou a cair esportivamente. Como fica essa relação?
EFC: Essa é um dos maiores problemas das equipes que querem se estabelecer globalmente. Como estabelecer prioridades? Quando Perez chegou ao clube, ele estava em uma situação econômica difícil, e a prioridade era a geração de receita, acima da parte esportiva. É claro que sem a parte esportiva não havia crescimento econômico, mas a prioridade era a geração de receitas. E é muito difícil quando você tenta fazer esse processo de transição de prioridades, porque as instituições, e não só as esportivas, não são como as pessoas. Eu não consigo me levantar e mudar de lugar assim tão fácil. Essa mudança como pessoa é muito mais fácil que para empresas. O Real custou a entender que, quando sua situação financeira estava ajustada, graças à chegada de Beckham, a parte esportiva se convertia em uma prioridade, porque sem ela um clube não é nada. E não é porque o torcedor deixa de admirar o Beckham, mas há uma massa social por trás que se interessa mais pelo esporte que pela parte econômica. O Real passou por uma situação difícil quando teve de mudar essas suas prioridades. Esse é um dos problemas que terão de ser enfrentados pela nova gestão de Florentino Pérez.
ME: Nesse período, o Real fortaleceu as parcerias que não são de exposição, como a da Audi. Esse tipo de acordo é a melhor saída para os clubes hoje em dia?
EFC: Eu entendo que as marcas é que estavam buscando isso, porque quando você busca um contrato de patrocínio, não está indo atrás só do retorno, porque há processos prévios antes da exposição. Um exemplo é a Coca, que às vezes patrocina um evento não só para gerar um comportamento de compra nas pessoas, mas sim para buscar outros objetivos. Tem determinadas marcas que precisam aparecer no mercado, porque as pessoas não sabem que elas existem. Nesse raciocínio, o patrocínio é uma ferramenta de comunicação. Tem outras que tem uma penetração forte nos mercados, mas sem uma relação afetiva, que vai ser alcançada justamente com acordos de patrocínio. E é por isso que as marcas retiram os seus apoios quando há um escândalo, porque a relação é afetiva, com laços positivos, e não negativos. Um acordo desses é difícil de ter sua efetividade medida, porque elas não querem um reconhecimento, mas sim ficar ligados à emoção que está por trás do esporte.
ME: Mas você acha que essa saída pode ser aplicada a outros mercados?
EFC: Os clubes tem a capacidade de gerar recursos de três fontes diferentes. Uma é a exploração de seus direitos, outra são todas as formas de receita, como patrocínio, e a outra de receber dos torcedores, que é uma fonte limitada, uma vez que o estádio tem a sua capacidade limitada. O Maracanã, por maior que seja, não comporta mais que um determinado número de pessoas. Mas isso não quer dizer que não possa gerar mais recursos com a venda de direitos, para que tenha mais gente assistindo fora do estádio. Outra ferramenta são os patrocínios. Quando Perez chegou, ele percebeu que muitas das propriedades que ele possuía estavam em poder de outras organizações, e não do Real Madrid. Elas haviam se aproveitado da situação econômica e tinham comprado essas propriedades. Por isso, a primeira questão era recuperar essas propriedades, de forma que a exploração desses recursos caísse direto no caixa do Real Madrid. Depois, o clube teria de otimizar a exploração dessas propriedades. E o clube conseguiu chegar a esse patamar como um reflexo do processo de globalização da marca, que gerou mais receitas e permitiu essas compras.
ME: E quais eram essas propriedades?
EFC: Olha, a equipe de basquete, por exemplo, praticamente não era do clube. O peito das camisetas, as placas de publicidade na quadra e todos os direitos de mídia, como o site oficial. O Real Madrid era capaz de firmar um acordo com a Audi, por exemplo, e muitas das receitas não vinham para o clube. A gestão de um clube passa por um aspecto comum, que é a inovação. Cada clube tem de avaliar qual propriedade pode ser mais interessante e bem trabalhada para as empresas, que estão sempre buscando uma relação com o público em um momento especial, emocional. É claro que nem todo mercado vê o esporte dessa maneira. Nos Estados Unidos, por exemplo, ele é muito mais trabalhado como espetáculo. Tem muitos americanos que preferem, independentemente do resultado, ver uma boa partida. Os latinos, por definição, querem a vitória. A relação é diferente. Nós estamos em um período mais emocional, e o patrocinador busca essa fase emocional. E a qualidade dessa relação é responsabilidade dos clubes e das ligas, que tem de abrir espaços para que as empresas cheguem a esse público no momento correto.
ME: O modelo de gestão da Espanha, incluindo a negociação com as TV?s, favorece o Real Madrid?
EFC: Esse é um tema complicado, porque o Real Madrid diz que esse sistema os prejudica. Os dois grandes vão negociar com uma quantidade estabelecida, e o restante é repartido com os demais clubes. Você pode crer, sim, que há um favorecimento, mas o argumento do Real Madrid é que a parte repartida seria menor se os dois não participassem, então os pequenos não tem outra alternativa. Existem, certamente, outros modelos mais interessantes, mas aí temos de ver se Real Madrid e Barcelona vão aceitar. É um modelo que está firmado em vários setores, inclusive no basquete espanhol, que premia os clubes que tem melhor desempenho na temporada. Esse modelo não vai interessar aos dois grandes, porque eles já tem uma vantagem muito grande sobre os demais.
ME: E a questão das sociedades anônimas. Na Espanha, poucos clubes não são sociedades anônimas. O que você pensa disso?
EFC: Hoje mesmo estamos em uma polêmica tremenda, porque as coisas na Espanha estão indo mal. Não é uma situação de alarme, mas de preocupação. Os bancos não tem liquidez, e não conseguem ter crédito, mas emprestaram mais de 50 milhões de euros para o Real Madrid. Isso é muito dinheiro. Então, você está produzindo uma situação complicada, que não aconteceria se o clube fosse uma sociedade anônima, porque teriam de responder a esse montante com o capital de seus sócios. Mas mesmo assim ele teria um capital maior que os dos outros.
ME: Maior que o dos outros, mas nem tão maior que o dos rivais europeus, não? Ele seria capaz de tirar Cristiano Ronaldo do Manchester United,, por exemplo?
EFC: Na Europa existe o modelo inglês, que nos mostra que o potencial de geração de recursos de um clube não está ligado necessariamente ao seu desempenho esportivo. O Chelsea, por exemplo, pertence a uma pessoa que não está interessada no esporte. Pelo contrário, ele está quase mais interessado em um fraco desempenho esportivo, que lhe garante mais exposição como pessoa.
ME: Mas essa disparidade entre Barcelona e Real Madrid e os demais não pode lhes ser prejudicial mais à frente, com a Liga Espanhola caindo de nível? O modelo americano de igualdade não é mais interessante?
EFC: Do ponto de vista da Liga, com certeza, o ideal é o ponto de vista competitivo. Mas para o Real Madrid, o melhor é que haja um grande desequilíbrio, especialmente se o desequilíbrio colocar o Real lá em cima. O interessante é que a capacidade de Real e Barcelona de continuarem crescendo passa pela participação em outras competições, porque o Espanhol já não oferece dificuldade. E é por isso que os dois sempre irão buscar, até que consigam, uma competição com uma amplitude geográfica maior, que geraria mais exposição e receita. Hoje a maior fonte de receitas de um clube ainda é a venda de direitos de televisão, e não a dos artigos de marketing. A venda de camisas, por exemplo, é importante, mas não é a única. Não se compra Beckham para que ele venda camisetas. A ideia é que eles cheguem a um mercado mais amplo.