Durante os 300 anos em que vigorou o tráfico de escravos, o Brasil recebeu mais de 4 milhões de indivíduos que foram sequestrados da África. Hoje, com 114 milhões de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas (54% dos habitantes, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)), o país possui a segunda maior população negra do mundo, estando atrás apenas da Nigéria.
ESPECIAL RACISMO: “A transformação no futebol vai se dar pela ação das marcas”
Apesar de serem maioria da população, os negros ainda estão distantes dos espaços de decisão do país, especialmente nas esferas econômica, social e política. O racismo é um elemento estrutural da sociedade brasileira e se manifesta com força também no futebol, esporte em que, ironicamente, alguns dos maiores ídolos de todos os tempos são pretos ou pardos.
Apenas em 2022, o total de casos de racismo reportados no futebol brasileiro já passa de 70. Os números são do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. A tendência é de que, neste ano, seja quebrada, com folga, a marca de 2019, quando a instituição identificou 70 denúncias veiculadas pela mídia.
Copa do Mundo no Brasil
O levantamento é feito a partir de pesquisas na internet sobre situações de racismo no futebol que tiveram repercussão nos meios de comunicação. A ideia de se criar o Observatório da Discriminação Racial no Futebol surgiu em 2014, ano em que foi realizada a Copa do Mundo no Brasil.
“À época, procurávamos estatísticas sobre casos de discriminação no futebol brasileiro, mas não conseguíamos ir além de episódios esporádicos que ganhavam repercussão na mídia nacional”, explicou o diretor executivo do Observatório, Marcelo Carvalho.
No ano da Copa, o levantamento apontou 25 denúncias de racismo no futebol brasileiro. Desde então, o número de casos não parou mais de crescer, exceto pelo hiato ocorrido em 2020, por conta da paralisação nos campeonatos e do fechamento dos estádios, ambos provocados pela pandemia de Covid-19.
Racismo sempre presente
Esse movimento ascendente, registrado nos últimos anos, talvez passe a impressão de que o racismo é um problema recente no futebol do Brasil e que antes imperava a harmonia e o respeito. A situação, porém, está muito longe de refletir a verdade.
“O racismo sempre esteve presente no futebol, que chegou ao Brasil com um recorte claramente racista e classista”, destacou Carvalho.
Um exemplo notório é que, em seus anos iniciais, muitas ligas e clubes do país adotavam regulamentos que barravam a participação de negros e operários em seus quadros (naquela época, do amadorismo, o atleta era também sócio do time).
Com a profissionalização do futebol a partir de 1933, os atletas negros passaram a fazer parte do dia a dia do esporte, assim como as diversas formas de discriminação e preconceito.
“O racismo ocorria, mas não havia o debate sobre esse problema”, disse o pesquisador.
Legislação
Uma máxima existente entre os estudiosos da linguagem afirma que “aquilo que não é nomeado, não existe”. E assim, por algumas décadas depois da integração dos atletas negros ao futebol brasileiro, o racismo permaneceu no limbo, permeando todas as relações, mas sem ser chamado e tratado como tal.
Na própria legislação brasileira, o racismo só passou a ser tratado como algo ilegal a partir de 1951, com a lei Afonso Arinos, que transformou essa prática em contravenção penal. Apenas com a Constituição de 1988, promulgada 100 anos após a abolição da escravatura, o racismo passaria a ser considerado crime inafiançável e imprescritível, sujeitando o autor à pena de reclusão.
Em um cenário desses, não é de se espantar que o futebol também venha a se preocupar apenas tardiamente com o problema do racismo. Somente em 2009 é que o Código Brasileiro de Justiça Desportiva passou a tratar essa questão com o devido rigor, com a inclusão do artigo 243-G.
Já o Código de Ética da Fifa determina que “a discriminação de qualquer tipo contra um país, uma pessoa ou grupos de pessoas por causa da raça, cor da pele, etnia, origem social, gênero, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, saúde, local de nascimento ou qualquer estatuto, orientação sexual ou qualquer outra razão é estritamente proibida e passível de punição por suspensão ou expulsão”.
Desde 2013, o código disciplinar da entidade máxima do futebol mundial prevê que o clube envolvido em racismo pode ser excluído da competição que disputa ou rebaixado de divisão.
Apesar da existência dessas regras, as punições quase nunca são aplicadas. Entre os casos mais notórios de sanções de fato aplicadas estão o do Grêmio, que perdeu pontos na Série A do Campeonato Brasileiro em 2014 por conta de ofensas racistas feitas ao goleiro Aranha, do Santos.
Outro episódio ocorrido no mesmo ano envolveu o Esportivo, do Rio Grande do Sul, que perdeu nove pontos no Campeonato Gaúcho de 2014 por conta de ataques racistas feitas ao árbitro Márcio Chagas durante o jogo contra o Veranópolis. Com isso, o time acabou sendo rebaixado à segunda divisão.
Sanções dessa natureza, porém, ainda são raras no futebol brasileiro. Um caso recente é o do Brusque, de Santa Catarina, que chegou a perder pontos na primeira instância, mas teve a punição revista.
Composição dos tribunais
De acordo com Marcelo Carvalho, 96% dos integrantes dos tribunais da Justiça Desportiva são homens brancos.
“O problema não é ter pessoas com esse perfil decidindo a punição. Mas sim o fato de eles quererem modular o que é racismo e o quanto o caso é grave”, declarou o pesquisador.
Atualmente, vigora o entendimento de que um caso de racismo só merece punição mais severa quando envolve um grande número de torcedores. Até hoje, porém, não foi estabelecida qual a quantidade mínima de agressores necessária para que um ato racista possa resultar em perda de pontos.
Em uma reunião realizada recentemente com representantes do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ednaldo Rodrigues, teria defendido a perda de pontos como pena para clubes envolvidos em casos de racismo. Ele é o primeiro dirigente máximo da entidade a se declarar negro.
Carvalho acredita que, além da punição, é necessário que as instituições que atuam no futebol brasileiro invistam na conscientização dos torcedores contra o racismo.