Envoltas no limbo jurídico no Brasil desde que, no fim do ano passado, o então presidente Jair Bolsonaro optou por não assinar o decreto que regulamentaria o setor, as apostas esportivas estão no centro de um escândalo que afetou um dos principais campeonatos profissionais de futebol do país: a Série B do Brasileirão.
O Ministério Público (MP) apura possíveis casos de manipulação que teriam ocorrido em três partidas na rodada final da competição em 2022: Vila Nova x Sport, Criciúma x Tombense e Sampaio Corrêa x Londrina. Quatro jogadores, sendo dois do Vila Nova, um do Tombense e outro do Sampaio Corrêa, são suspeitos de terem participado do esquema, que seria organizado por uma empresa com sede em São Paulo.
Em entrevista à Máquina do Esporte, o especialista em compliance esportivo Ian Cook afirmou que a falta de regulamentação no setor é um aspecto decisivo para a ocorrência de fraudes no futebol e também em outras modalidades.
As apostas esportivas foram autorizadas no Brasil a partir da lei 13.756, de dezembro de 2018. O texto sancionado por Michel Temer previa um prazo de até dois anos, prorrogável por mais dois, para que a matéria fosse regulamentada via decreto presidencial. Esse limite venceu em 12 de dezembro de 2022, sem que Jair Bolsonaro, presidente da República na época, assinasse a regulamentação.
Nesse período de quatro anos, a atividade explodiu no país, com casas de apostas patrocinando não apenas clubes de todas as divisões, mas também federações, ligas, campeonatos e até transmissões, movimentando bilhões de reais anualmente.
Sem regulamentação, as empresas do setor seguem atuando como offshores, com escritórios sediados no exterior e sendo tributadas em seus países-sede. Além disso, o Brasil deixa de contar com uma autoridade responsável por fiscalizar o setor.
De acordo com Cook, em alguns locais do mundo, como Malta e Gibraltar, sedes de algumas das maiores empresas de apostas do mundo, as regras do setor são similares às do mercado financeiro.
“Esses lugares contam com legislação rígida e mecanismos fortes para identificar não apenas tentativas de manipulação nos jogos, mas também uma eventual lavagem de dinheiro”, explicou.
Segundo ele, a autoridade responsável por fiscalizar o setor de apostas desenvolve, inclusive, ações voltadas ao jogo responsável.
“Hoje, no Brasil, por exemplo, não contamos com nenhum órgão que auxilie a pessoa que tem vício em jogo”, afirmou Cook.
Casas de apostas também podem ser vítimas
Cook ainda lembrou que, em casos de manipulação, as empresas de apostas também podem ser vítimas dos esquemas fraudulentos.
“No fim das contas, a casa é que vai arcar com o prejuízo da fraude”, disse.
Segundo ele, a manipulação não se atém apenas ao resultado das partidas, mas pode atuar de maneira segmentada.
“Hoje em dia, é possível apostar em quantos cartões serão distribuídos em um jogo. Ou quantos atletas serão expulsos”, destacou.
Na avaliação de Cook, esse tipo de esquema tende a encontrar terreno mais fértil para prosperar nas ligas menores, que estão em menos evidência na mídia e cujos atletas ganham salários mais baixos.
“É mais fácil manipular competições que possuem menos visibilidade”, explicou.
De acordo com ele, embora os casos envolvendo o futebol ganhem maior repercussão, a modalidade não é a única a sofrer com o problema da manipulação.
“Atualmente, tem gente apostando em competições pouco conhecidas de tênis ou em torneios de xadrez no interior da Índia. Em tese, numa situação dessas, a quantidade de pessoas a serem corrompidas é muito menor do que em um jogo de futebol, em que há 11 jogadores em cada time”, salientou.
Mecanismos de controle
Na visão de Cook, as entidades esportivas (ligas e federações) e as casas de apostas precisam investir cada vez mais em ferramentas de controle eficazes para identificar eventuais fraudes. Atualmente, grandes empresas internacionais atuam no segmento de análise de dados durante as partidas, o que ajudaria a identificar movimentações atípicas dentro e fora de campo.
É o caso da Genius Sports e também da Sportradar, que recentemente firmou parceria com a Federação Paraense de Futebol, além de ter prestado serviço para a Fox Sports, durante a transmissão do Super Bowl deste ano para Estados Unidos e Canadá.
“Esse tipo de trabalho ajuda a identificar situações atípicas, como uma expulsão inexplicável durante um jogo ou um movimento muito grande de apostadores voltado para determinada situação”, analisou Cook.
O especialista acredita que prevenir as tentativas de fraude seja uma tarefa difícil, mas defende a adoção de ferramentas de controle e de mecanismos de investigação e punição mais rigorosos, de modo a coibir a manipulação no esporte.
“É preciso identificar e punir os culpados. E, enquanto não temos a regulamentação, é fundamental que as próprias entidades tomem uma atitude firme em relação aos envolvidos nesse tipo de prática”, finalizou o especialista em compliance esportivo.