Relatório Convocados mostra recuperação financeira dos clubes, mas dívidas preocupam

Flamengo comemorou a conquista da Libertadores em 2022 - Gilvan Souza / Flamengo

O Relatório Convocados 2023: Finanças, História e Mercado do Futebol Brasileiro, feito em parceria com a Outfield e a Galapagos, que foi lançado nesta quarta-feira (13), mostra que houve recuperação econômica dos clubes brasileiros após dois anos de atividades prejudicadas pela pandemia, mas que o endividamento também cresceu.

Segundo o documento, em 2022, os 40 principais clubes do país arrecadaram R$ 8 bilhões. Desse montante, R$ 6,9 bilhões ficaram com os times da Série A, enquanto R$ 1,1 bilhão foram obtidos pelas equipes da Série B do Brasileirão.

Esse grupo de times concentra cerca de 90% das receitas que circularam no futebol nacional. O montante também representa um avanço de 2% em relação a 2021.

“De certa forma, retomamos o caminho natural do futebol após dois anos complicados. Tão natural que recuperamos as receitas, os investimentos, mas também voltamos a descuidar das dívidas, que seguiram uma rota de crescimento”, afirmou Cesar Grafietti, sócio da consultoria Convocados, em entrevista à Máquina do Esporte.

Endividamento

Se por um lado houve recuperação econômica, por outro, o nível de endividamento entre os times da Série A e os quatro que subiram da segunda divisão (Cruzeiro, Grêmio, Vasco e Bahia) voltou a subir, atingindo R$ 10 bilhões. Esses débitos cresceram 9% em relação a 2021.

“Sim, as dívidas seguem preocupando, mas é preciso separar os clubes. O aumento e as dívidas mais preocupantes estão concentradas em alguns clubes, como Atlético-MG, Corinthians, as SAFs [Sociedades Anônimas do Futebol], que ainda estão em processo de reorganização financeira, o São Paulo e o Internacional”, analisou Grafietti.

O economista, responsável pelo Relatório Convocados, ponderou que há clubes que têm feito o dever de casa, atuando no mercado de transferências de maneira sensata, gastando apenas o que arrecadam e saneando as contas.

“Em contrapartida, alguns clubes operam de maneira pouco endividada, como Flamengo, Fortaleza e Athletico-PR. Isso permite que operem de forma mais estável e planejada”, destacou.

Para ele, a possível formação de uma liga brasileira de clubes pode ajudar os principais times do país a atingirem uma gestão mais profissional.

“A formação da liga é importante, mas desde que traga algum processo que demande disciplina financeira aos clubes. O dinheiro precisa entrar, e junto tem que vir uma cobrança pelo ajuste das finanças”, enfatizou.

Liga

Em um cenário complicado, com muita divisão entre os clubes, é cada vez mais difícil que haja a formação de uma liga brasileira após o fim do atual contrato de TV, em 2025. Para Grafietti, se isso for confirmado, significará menor potencial de arrecadação na indústria do futebol.

“Perdemos a chance de desenvolver um produto estruturado, e isso significa menos receitas no longo prazo. Mas, essencialmente, significa que muitos clubes terão bem menos do que acreditam, porque não há espaço e dinheiro para todos num ambiente fragmentado”

Cesar Grafietti, sócio da consultoria Convocados

Atualmente, o futebol brasileiro está dividido entre dois grandes grupos. A Liga do Futebol Brasileiro (Libra) conta com a participação de 15 clubes, entre os quais Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras. Já a Liga Forte Futebol (LFF) é formada por 26 equipes, entre as quais Atlético-MG, Internacional, Athletico-PR, Fluminense e Fortaleza.

Há ainda um bloco independente recentemente constituído, com Botafogo, Cruzeiro e Vasco, todos geridos por meio de SAFs, que estavam na Libra. Já o Botafogo-SP é o único time das Séries A e B que não aderiu a nenhum grupo.

“É do jogo: muitas vezes é preciso dar alguns passos para trás para poder voltar e tomar o caminho correto”, analisou Grafietti.

Para Pedro Oliveira, CEO da Outfield, empresa de investimentos que atua nas áreas de esporte, games e entretenimento e participa do estudo, ainda há esperança na formação da liga brasileira.

“Somos muito otimistas a respeito disso. Acreditamos que irá acontecer e consideramos como um movimento natural que acompanha as tendências globais”, afirmou Oliveira, em entrevista à Máquina do Esporte.

“Se observarmos o cenário do esporte global atualmente, todas as principais ligas e produtos são estruturados dessa forma. Se olharmos para os Campeonatos Espanhol, Italiano, Francês, Alemão, a Premier League e as ligas americanas, como a NBA, todas elas adotam esse modelo”

Pedro Oliveira, CEO da Outfield

Para o executivo, a própria realidade econômica imporá a necessidade da formação de uma liga de futebol, na qual os clubes passarão a gerir os direitos de mídia e os contratos de patrocínio do campeonato, aumentando a arrecadação e fazendo o valor do Brasileirão crescer ano a ano.

“Há uma necessidade no mercado brasileiro de realizar esse movimento para acompanhar as tendências globais, principalmente nesse momento em que o dinheiro está buscando propriedades intelectuais relevantes”, destacou.

SAFs

A temporada 2022 também foi a primeira em que os clubes pioneiros do país a constituir e vender suas SAFs a investidores experimentaram seus novos modelos de gestão e governança.

Em relação ao desempenho esportivo, Cruzeiro e Vasco retornaram à Série A do Brasileirão. Já o Botafogo conseguiu retomar seu nível competitivo, classificando-se para a Copa Sul-Americana de 2023 por intermédio do Brasileirão. Neste ano, o clube ocupa a liderança do Campeonato Brasileiro. No entanto, o processo de recuperação econômica desses times, ainda muito endividados, será longo.

“Ainda é cedo para análises mais definitivas sobre as SAFs. É possível ver que o Cruzeiro foi bastante transparente, o Vasco um pouco menos, e o Botafogo nada transparente. Transparência ajuda na avalição”, afirmou Grafietti, em relação aos balanços financeiros divulgados pelos times.

“O fato é que vemos realidades e comportamentos diferentes, com o Cruzeiro mais austero, o Botafogo com mais investimentos e desempenho pior, e para o Vasco, vimos apenas quatro meses de SAF, o que não dá para tirar grandes conclusões”, ponderou.

Para Oliveira, apesar do pouco tempo para análise, as SAFs já mostraram melhorias de gestão em relação ao modelo associativo anterior.

“Considero que o primeiro movimento foi um grande avanço, visto que esses clubes estavam em situações financeiras delicadas. É positivo perceber uma evolução clara nesses clubes, com mais poder de investimento e uma melhor organização, além da participação de executivos de mercado na gestão”

Pedro Oliveira, CEO da Outfield

O executivo acredita que a recuperação financeira desses clubes se reflete na melhoria da performance dentro de campo.

“É importante ressaltar que existem complexidades operacionais inerentes ao futebol. O desempenho esportivo sempre caminha em paralelo ao desempenho financeiro”, analisou Oliveira, que acredita na recuperação esportiva do Vasco, clube que faz má campanha no Brasileirão 2023.

“Apesar de o Vasco estar atualmente em uma situação de rebaixamento, acredito que há um horizonte sustentável para o projeto, com investidores comprometendo capital e perspectivas de estabilização, e progresso nos três clubes mencionados”, defendeu.

O executivo acredita ainda que, em 2023, o futebol brasileiro esteja vivenciando uma segunda onda das SAFs. Na primeira, os clubes com problemas econômicos extremamente graves, como foi o caso de Botafogo, Cruzeiro e Vasco, buscaram desesperadamente investidores que fossem capazes de oferecer uma recuperação financeira rápida e tivessem capacidade de realizar investimentos para recuperar o nível competitivo das equipes.

Ferran Soriano, CEO do Grupo City, assinou contrato com o Bahia – Reprodução

No momento atual, clubes mais estruturados financeiramente estão fazendo acordos comerciais mais vantajosos, podendo realizar um processo de transformação mais seguro, sem grandes atropelos.

“Entendo que é como se estivéssemos vivenciando uma segunda onda de SAFs, principalmente por duas razões. A primeira é que esses clubes, cada um à sua maneira, estavam em situações financeiramente menos fragilizadas, o que lhes deu tempo para realizar esse movimento”, explicou Oliveira.

Os times que fazem parte dessa segunda onda são o Bahia, que negociou 90% de sua SAF com o City Football Group (CFG), e o Coritiba, que recentemente anunciou um acordo de venda da mesma participação para a Treecorp.

“No caso do Bahia, é um clube que já tinha uma situação de dívidas mais controlada, e, no caso do Coritiba, o clube entrou em recuperação judicial para organizar seu passivo. Por causa disso, ambos conseguiram negociações que, do meu ponto de vista, foram bastante interessantes tanto para os clubes quanto para os investidores”, analisou o CEO da Outfield.

Ele vê como importante o movimento da Treecorp, uma investidora de capital privado com sede em São Paulo, de investir em um clube tradicional do futebol brasileiro.

“Para nós, da Outfield, a entrada da Treecorp é um marco, pois demonstra que a Faria Lima, em São Paulo [principal centro financeiro do país], está voltando sua atenção para o futebol”, destacou Oliveira.

“No caso da Treecorp, eles enxergaram o valor de realizar uma grande operação e comprometer um volume significativo de recursos para participar da construção de valor do Coritiba e do futebol brasileiro”, acrescentou.

Salários

Velhos e novos modelos de gestão convivem no futebol brasileiro atual, em que os gastos com salários experimentam um aumento substancial. Segundo o Relatório Convocados, os gastos com folha de pagamento dos times da Série A em 2022 chegaram a R$ 3,4 bilhões. Isso representa cerca de 49,3% de tudo o que os clubes arrecadaram na temporada passada.

“É um nível bastante aceitável, na média. Na Europa, o valor comparável é perto disso. Quando ouvimos falar que os sistemas de Fair Play Financeiro limitam os gastos salariais a 70% das receitas, esses valores incluem amortização de investimentos. Então, o número apenas de salários fica entre 50% e 60%”, explicou Grafietti.

O economista, porém, vê um nível de eficiência na gestão dos clubes europeus ainda superior à média dos times no Brasil.

“Lembramos que, na Europa, a maioria esmagadora dos clubes tem apenas o futebol e opera com estruturas de pessoal de gestão bastante enxutas, diferente do Brasil no modelo associativo”, afirmou.

Apostas

Se por um lado houve um aumento de despesas com salários, por outro, os clubes se beneficiaram do crescimento do investimento dos sites de apostas esportivas com marketing esportivo. No ano passado, os 20 clubes da Série A do Brasileirão contaram com o patrocínio de casas de apostas. Desses, dez tiveram patrocínio máster de plataformas do segmento.

“Não há números claros, mas é visível que uma parte importante do futebol está sendo financiada por casas de apostas, essencialmente na linha de receitas com publicidade. Seja diretamente nos clubes, seja indiretamente através do patrocínio das competições”, analisou Grafietti.

Para o sócio da Convocados, o mercado precisa passar pela regulamentação do Governo Federal, que está prestes a editar uma medida provisória para estabelecer o regramento do setor.

“Independentemente de gostar ou não da atividade, precisa ser regulada, controlada, e, ao fazer isso, é possível que haja uma depuração do sistema, permanecendo na ativa os que querem desenvolver corretamente a atividade”

Cesar Grafietti, sócio da consultoria Convocados

Para o economista, as empresas de apostas devem perder o atual protagonismo no patrocínio ao futebol nos próximos anos.

“Assim como na Europa, a tendência é que no médio prazo a força das casas de apostas, enquanto apoiadores comerciais do futebol, arrefeça, uma vez que o mercado estiver mais estabelecido. Ainda é cedo para apontar tamanho de mercado, mas certamente teremos movimentações relevantes no segmento”, finalizou Grafietti.

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