O Comitê Olímpico Internacional (COI) oficializou, nesta segunda-feira (23), a saída de Thomas Bach e a chegada de Kirsty Coventry, que se tornou a mais jovem (aos 41 anos), a primeira mulher e a primeira africana a presidir a entidade. A ascensão da ex-nadadora do Zimbábue, que varreu as eleições do comitê, em março, é simbólica e ao mesmo tempo desafiadora.
A simbologia se aplica ao fato de uma mulher ocupar, neste momento, o cargo mais importante do Movimento Olímpico em uma entidade com notório histórico machista. Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin, pai dos Jogos Olímpicos da Era Moderna e segundo (e mais longevo) presidente da história do COI, era um crítico ferrenho ao esporte feminino.
“É possível oferecer às mulheres acesso a todas as competições?”, questionava o barão, para logo em seguida deixar claro a sua opinião contrária.
“Então por que permitir o acesso a algumas e excluí-las de outras? Não só há tenistas e nadadoras. Também há amazonas, praticantes de esgrima e, na América, remadoras”, afirmava, com certo asco.
“No futuro, pode ser que haja corredoras e até jogadoras de futebol. Seriam estes esportes femininos um espetáculo edificante para as multidões que presenciam os Jogos Olímpicos?”, criticava.
Mulheres
O tempo passou e, 100 anos após a morte do Barão de Coubertin, as mulheres jogam tênis, nadam, correm, jogam futebol e, provavelmente para escândalo da mentalidade conservadora do início do século XX, levantam peso, lutam e, a partir de agora, também presidem o COI.
“Depois que fui eleita, meu marido começou a rir na mesa do café da manhã, olhou para mim e perguntou: ‘Você tem noção de que é a pessoa mais poderosa do esporte?'”, contou Kirsty Coventry, entre diversão e espanto.
“E eu pensei: ‘Do que você está falando?’ Para mim, não se trata do título. Não se trata de poder. Às vezes, essas coisas atrapalham e fazem você se concentrar nas coisas erradas. Simplesmente não é quem eu sou. Mas estou muito orgulhosa de termos eleito nossa primeira presidente mulher”, destacou a ex-nadadora.
“E farei o meu melhor para garantir que seja uma jornada de sucesso”, completou.

África
O ineditismo também passa pelo fato da ex-atleta ser a primeira africana a dirigir o COI. Vale lembrar que a primeira participação africana em Olimpíadas entrou tristemente para a história pelo alto teor racista.
Durante os Jogos de St. Louis (EUA), em 1904, houve os Dias Antropológicos, em que participaram negros, indígenas, filipinos, mexicanos e pigmeus, entre outros povos vistos como inferiores. Todos participaram de competições sem nenhuma formação ou treinamento.
“Não estive presente apenas a um evento esportivo, mas a uma feira em que houve esporte, trapaças e monstros exibidos para o escárnio geral”, relatou Ferenc Kemény, delegado do COI à época.
No plano diretivo, dos nove presidentes anteriores a Kirsty no COI, oito, todos homens brancos, vieram da Europa, representando diferentes nacionalidades: Bélgica (duas vezes), Espanha, França, Grécia, Irlanda, Suécia e Alemanha, país natal de Bach, campeão olímpico na esgrima em Montreal 1976, que transmitiu o poder para a zimbabuana nesta segunda-feira (23).
“Foi uma transição respeitosa. Com Kirsty, construímos um forte vínculo, de atleta olímpico para atleta olímpica. Sei que ela liderará o COI com convicção e seu estilo único. Ela é uma nova voz poderosa para as novas gerações. Com Kirsty Coventry, o Movimento Olímpico está nas melhores mãos possíveis”, destacou o agora ex-presidente.
Kirsty já havia quebrado barreiras nas piscinas ao se tornar a primeira campeã olímpica de seu país, com o ouro nos 200m costas em Atenas 2004. Quatro anos depois, repetiu o feito em Pequim 2008. Até hoje, é dona de 7 das 8 medalhas olímpicas conquistadas por seu país na história.
“Tive muita sorte de ter mulheres fortes ao meu redor”, comentou a nova presidente.
“Meu avô morreu quando minha mãe estava no final da adolescência. Então, minha avó foi mãe solteira durante a maior parte da vida, com três filhos, e ela era uma mulher incrivelmente forte que criou a família. E acho minha mãe incrível”, ressaltou.
Estilo
Bach costumava se hospedar em uma suíte do luxuoso Lausanne Palace, ao custo de € 2.350 por noite, valor custeado pelo COI. Kirsty já confirmou que não seguirá o exemplo.
“Não vamos ficar no Palace. Eu realmente quero que minhas filhas cresçam fazendo a mesma coisa que eu fiz: arrumando as camas, fazendo tarefas diárias e sendo crianças”, contou ela, que é mãe de duas filhas.
“Tenho aquele lembrete constante de que tenho duas filhas e quero tornar a jornada de vida delas e seus caminhos um pouco mais fáceis e um pouco mais justos”, acrescentou.
Com cinco Olimpíadas no currículo, Kirsty se aposentou das piscinas após os Jogos do Rio de Janeiro 2016, aos 32 anos, passando a ocupar cargos de gestão esportiva. Tornou-se membro do COI e da Comissão de Atletas, que chegou a presidir. Seu último cargo de administração foi de ministra do Esporte, Recreação, Artes e Cultura do Zimbábue, cargo que deixou neste ano.
Mais do que o caminho das vitórias em competições e na gestão esportiva, em que ainda os espaços de participação feminina são limitados, Kirsty afirmou que a formação de seu caráter aconteceu mesmo nas derrotas.
“Aprendi as melhores lições fracassando. E fracassei em muitas coisas”, disse a atleta africana mais premiada da história olímpica em uma palestra recente a jovens nadadoras.
“A vida tem um jeito muito bom de nos humilhar”, completou.

Desafios
Kirsty assume o COI em um momento de polarização e divisão do mundo. Ainda há conflitos não resolvidos, como a Guerra da Ucrânia, os ataques na Palestina, definidos como “massacre” pela própria Organização das Nações Unidas (ONU), e a recém-ofensiva de Israel ao Irã, agora com participação dos EUA, sede da próxima edição dos Jogos de Verão, em Los Angeles 2028.
Após vencer as eleições do COI, a nova presidente disse que o bom relacionamento com Donald Trump, presidente dos EUA, será essencial para a boa preparação dos Jogos Olímpicos, que serão disputados pela terceira vez na cidade da Califórnia, após as edições de 1932 e 1984.
O líder norte-americano, cuja agenda está repleta de obstáculos controversos significativos, que vão desde regras de elegibilidade de gênero a preocupações ambientais, segurança reforçada, tarifas comerciais e vistos de imigração rigorosos, é tudo menos um negociador fácil de lidar. No entanto, Coventry conseguiu transformar sua experiência limitada em uma vitória impressionante na 144ª Sessão do COI, realizada esta semana na Grécia.
“Tenho lidado com, digamos, homens difíceis em altos cargos desde os meus 20 anos”, afirmou a nova presidente.
“Minha firme convicção é de que o presidente Trump é um grande amante do esporte. Ele vai querer que estes Jogos sejam importantes, que sejam um sucesso”, completou.
Ainda não há data marcada na agenda de Trump para receber a nova presidente do COI entre controvérsias tarifárias, política ambiental, intervenções militares e política migratória, entre outros temas do momento.
Mas em um assunto, ao menos, parece haver concordância entre o presidente norte-americano e a nova mandatária do COI: a participação de transgêneros no esporte. Crítico feroz da iniciativa, Trump parece encontrar acolhida em argumentos que Kirsty tem repetido desde que ganhou a eleição.
“Existem cada vez mais pesquisas científicas. Está muito claro que mulheres transgênero são mais capazes na categoria feminina e podem tirar oportunidades que deveriam ser iguais para as mulheres”, defendeu.
Em Paris 2024, Lin Yu-ting e Imane Khelif, que haviam sido reprovadas em testes de elegibilidade de gênero pela Federação Internacional de Boxe (IBA, na sigla em inglês), acabaram autorizadas a competir nas Olimpíadas. Ambas ganharam o ouro, gerando críticas sobre o assunto, incluindo de Trump, então candidato a presidente dos EUA.
Com menos de três anos para Los Angeles 2028, país governado por um político que já deixou claro que atletas trans não são bem-vindas, Kirsty terá que agir rápido para chegar a uma decisão sobre o tema.