O Globoplay estreará, na próxima segunda-feira (13), a série documental “A mão do Eurico”, que retrata a história de Eurico Miranda (1944-2019), cartola do Vasco e que foi protagonista de diversos incidentes para lá de polêmicos no futebol brasileiro durante os anos 1980, 1990 e 2000. A série conta com cinco episódios, que serão lançados ao longo da semana.
“A história do Eurico Miranda transcende o Vasco porque talvez seja o dirigente mais polêmico da história do futebol brasileiro. Ele atravessa muitas décadas. É um cara influente nos bastidores do poder. Tem histórias ali de campeonatos que ultrapassam a própria figura do Eurico”, contou Rafael Pirrho, diretor da série, em entrevista à Máquina do Esporte.
No bate-papo de cerca de meia hora, Pirrho falou sobre o fascínio por um personagem tão polêmico, a adoração e rejeição dos torcedores ao dirigente, e o legado de Eurico no Vasco e no futebol brasileiro.
O diretor comentou, inclusive, brigas do cartola com a própria Globo, como o dia em que o Vasco entrou para jogar a final da Copa João Havelange de 2000, em janeiro de 2001, utilizando o logotipo do SBT na camisa. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Como surgiu a ideia de retratar um personagem tão controverso como Eurico Miranda?
Fizemos um produto muito bom, com sucesso, que é o Dr. Castor [série sobre Castor de Andrade (1926-1997), bicheiro e patrono do Bangu]. Depois disso, a ideia de fazer o Eurico foi muito recorrente. Acho que, na verdade, o controverso do personagem é muito rico para o documentário. Porque se pegar algum atleta que tenha poucas contradições, pode ser um ótimo documentário, sem dúvida, mas tem mais previsibilidade.
Acho o Eurico um baita personagem. Ninguém fica indiferente em relação a ele. Tem gente que defende que é o maior dirigente da história do futebol brasileiro. Outros acham que ele é responsável por todos os males do Vasco. Queremos fugir do maniqueísmo, não necessariamente para as pessoas mudarem sua opinião em relação a ele, mas para que conheçam a história completa.
“A história do Eurico transcende o Vasco, porque talvez seja o dirigente mais polêmico da história do futebol brasileiro. Ele atravessa muitas décadas. Torcedores do Flamengo, do Fluminense, não apresentam rejeição”
Rafael Pirrho, diretor da série “A mão do Eurico”
Acredita que torcedores de outros times vão querer assistir à série?
É engraçado isso. Sinto às vezes que a maior rejeição ao Eurico está entre os vascaínos, mais do que entre torcedores de outros times. Claro que gostaria que a série fosse assistida por todas as torcidas.
A história do Eurico transcende o Vasco, porque talvez seja o dirigente mais polêmico da história do futebol brasileiro. Ele atravessa muitas décadas. É um cara influente nos bastidores do poder. Tem histórias ali de campeonatos que ultrapassam a própria figura do Eurico. Em um determinado momento, ele foi dirigente da própria CBF [Confederação Brasileira de Futebol], na Copa América de 1989. Acho que a história dele ultrapassa o Vasco. Torcedores do Flamengo, do Fluminense, não apresentam rejeição. Querem ver, acham interessante. Então, para quem não é vascaíno e até quem não é carioca, é um bom entretenimento, tem histórias interessantes.
Eurico Miranda, ao contrário de outros personagens do futebol brasileiro, não conta com um livro sobre a sua história. Como foi o trabalho de pesquisa para retratá-lo?
Fiz o roteiro para a série da Elza e do Mané Garrincha [“Elza e Mané – Amor em Linhas Tortas”], e os dois têm biografias escritas. A da Elza foi escrita pelo Zeca Camargo e a do Garrincha é uma das maiores já escritas [“Estrela Solitária”, de Ruy Castro]. Então, serviram como guia.
O Eurico não tem uma biografia para usar de referência. Para a elaboração do trabalho, há uma pesquisa que durou um ano. O acervo da Globo é riquíssimo. Também fizemos muita pesquisa de texto com jornais da época, pesquisamos outros veículos. Entramos em contato com a família e conseguimos que eles cedessem algum material.
Como foi o contato com a família? Houve alguma restrição deles em fazer uma série sobre o Eurico Miranda na Globo?
Nosso primeiro contato foi com o Euriquinho, que é quem tem maior vida pública no Vasco. Chamamos o Euriquinho para conversar e falar do projeto. Conseguimos convencê-lo de que seria interessante. Falam muito do Eurico, mas temos pouco a visão da família. Foi muito importante entrevistá-los. Havia resistência da família por conta das questões com a Globo. Precisamos conversar. Convencemos o Euriquinho e, depois, a dona Silvia, que é a viúva. Acho importante dar o ponto de vista deles.
E entre os vascaínos? Como o Eurico Miranda é visto hoje?
Isso é curioso. Vejo uma reação imensa nas redes sociais. Há comentários de que ele foi o maior dirigente da história do Vasco. Em seguida, outro diz que ele acabou com o Vasco. Falar de Eurico Miranda engaja muito. Acredito que a maior parte da torcida, hoje, não gosta do Eurico. Mas é muito legal contar no documentário que o Eurico não chegou a essa posição autocrata do nada. Ele entregou muita coisa. Foi adorado pelos torcedores. Lá atrás, ele teve muito apoio da torcida, tanto é que se tornou por muito tempo um dirigente poderoso do Vasco. Isso a série tenta mostrar.
Ele foi vice-presidente de futebol do Vasco de 1986 a 2000. Nesse período, se olhar os resultados esportivos, o Vasco ganhou muita coisa, três Brasileiros [1989, 1997 e 2000], um inédito tricampeonato estadual [1992, 1993 e 1994], a Copa Mercosul [2000], a Libertadores [1998]. É um time muito protagonista no futebol brasileiro. E, a partir de 2000, quando ele assume a presidência, o Vasco não ganha mais. Um corte muito simples que se faz é que ele como vice-presidente ganhou muito e, como presidente, ganhou pouco. Tem uma diferença importante na trajetória dele.
“Se olhar a trajetória do Eurico, o jeito que ele trabalhava funcionou muito nos anos 1980 e 1990. O futebol brasileiro evoluiu bastante. Nos anos 2000, o estilo do Eurico já não funcionava”
Rafael Pirrho, diretor da série “A mão do Eurico”
O que o tipo de cartola como o Eurico Miranda deixou de legado para o futebol brasileiro? Você concorda com a definição dele ser símbolo de atraso na gestão esportiva?
O Eurico sempre defendeu essa visão de que tinha que ser apaixonado pelo clube. Tem um determinado momento, no quinto episódio, que ele fala que dirigente do Vasco tem que ter sobrenome português. Que não pode ter três consoantes no nome. Se olhar a trajetória do Eurico, o jeito que ele trabalhava funcionou muito nos anos 1980 e 1990. O futebol brasileiro evoluiu bastante. Nos anos 2000, o estilo do Eurico já não funcionava. Ele conseguia operar no caos dos anos 1980 e 1990.
Como foi colocar na Globo um episódio tão controverso como o do Vasco entrando em campo com propaganda do SBT na camisa na final da Copa João Havelange?
As pessoas lembram muito disso. Essa história, contada em qualquer plataforma [de streaming], atrai a atenção. No Globoplay, vai chamar ainda mais a atenção. Na série, a Globo e a família do Eurico falam sobre isso. Tentamos recontar essa história com todas as versões. Existem pontos de vista de cada um. Demoramos um tempo nessa história. Entendemos que é um fato relevante. Passamos pelas razões da briga. Não vou dar spoiler.
Isso também mostra uma característica do Eurico, que era misturar as questões pessoais dele com as do Vasco. Ele se sente atingido pela Globo. A partir daí, ele toma uma atitude muito surpreendente. Ninguém imaginava isso. Com razão ou sem, ele usa o espaço do Vasco para responder à Globo.
Por outro lado, o Eurico era idolatrado pelos jogadores? Por quê? Ele fazia algo de diferente dos outros dirigentes?
Ele não era idolatrado por todos os jogadores. Fizemos uma longa pesquisa, mas muitos jogadores falam bem do Eurico. Na série, tem jogadores como Bebeto, Donizete e, principalmente, o Romário, que trazem esse olhar positivo sobre o Eurico. O Romário diz que o Eurico foi um dos poucos amigos que ele fez no futebol. Tinha uma relação pessoal muito forte com o Eurico. Uma história boa é que o primeiro charuto que o Eurico fumou foi o Romário que deu.
O Romário conta uma história, que está em um dos episódios, que o Eurico cumpria o que prometia. Outros jogadores dizem que não. O Romário surge em 1986 como um jogador absurdo, de muita explosão. E aí ele diz que só vai continuar jogando se renovar o contrato. O Eurico não queria renovar. Aí, a coisa se arrastou, e o Eurico falou: “Você quer dinheiro?” E fez um cheque do próprio punho. O Romário rasgou o cheque e mandou ele para aquele lugar. Criou uma situação de confiança.
A maioria [dos jogadores] diz que o Eurico cumpria as coisas que falava. O Bebeto falou a mesma coisa, quando o Vasco tirou ele do Flamengo. O Eurico trabalhava muito na conversa, na combinação, na informalidade. Hoje, talvez isso não funcione, porque o clube precisa ter as coisas no papel. Mas, de fato, isso trouxe a confiança de muitos jogadores. O maior exemplo foi com o Romário.