Disputa pelo controle do skate olímpico no Brasil envolve questões políticas e verba de mais de R$ 10 milhões

Rayssal Leal e Pedro Barros conquistaram medalhas para o Brasil no skate, nos Jogos de Tóquio - Reprodução / Instagram (@cbskskate)

Considerado uma das principais esperanças de medalhas para o Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, o skate (que garantiu três pratas para o país em Tóquio 2020) iniciou 2024 envolvido em uma polêmica sem precedentes.

A disputa pela representatividade do skate olímpico brasileiro tem como pano de fundo questões políticas e um repasse governamental de mais de R$ 10 milhões anuais, da Lei Agnelo/Piva, provenientes da arrecadação das loterias federais.

O auge da polêmica ocorreu na semana passada, depois que a World Skate, entidade internacional responsável por regular os esportes de patinação sobre rodas no mundo, anunciou a desfiliação da Confederação Brasileira de Skateboarding (CBSk), passando a reconhecer apenas a Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação (CBHP) como representante oficial da modalidade skateboarding no Brasil.

Além dos aspectos políticos e econômicos, essa disputa é complexa e envolve inclusive questões semânticas e culturais. Nos últimos dias, a Máquina do Esporte ouviu as principais partes envolvidas nesse debate e traz agora um panorama com os pontos de vista de cada um.

Histórico da polêmica

Apesar de ter explodido apenas recentemente, a disputa pela representatividade do skate no Brasil é antiga e remonta à década passada.

O anúncio de que a modalidade passaria a fazer parte dos Jogos Olímpicos ocorreu em 2016, durante a edição do Rio de Janeiro. A solicitação para que o esporte fosse incluído havia sido feita em 2009, pela Federação Internacional de Desportos sobre Patins (FIDP).

Em 2017, ela se uniu à International Skateboarding Federation (ISP), sediada nos Estados Unidos, dando origem à World Skate. Nessa época, começou a surgir uma polêmica entre os principais praticantes da modalidade, insatisfeitos com os rumos tomados pela inclusão do esporte nos Jogos.

Diante da ameaça de boicote, o que afastaria as principais estrelas do skate dos Jogos de Tóquio, o Comitê Olímpico Internacional (COI) e seus patrocinadores propuseram à World Skate um arranjo político, permitindo a coexistência de mais de uma entidade nacional em 16 países, onde os atletas se recusavam a competir sob a autoridade de federações ou confederações de patinação.

À época, ainda não estava definido se o skate permaneceria para Paris 2024. Desde os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, em Atenas 1896, tem sido comum a inclusão e exclusão de modalidades, de uma edição para outra. O primeiro esporte sobre rodas a ganhar o status de olímpico foi o hóquei sobre patins, em Barcelona 1992, mas a modalidade acabou sendo excluída nas edições seguintes.

Em 2019, em uma assembleia realizada na Espanha, foi ratificado um acordo que reconheceu a legitimidade das entidades dedicadas apenas ao skateboarding (entre elas a CBSk no Brasil), mas com o compromisso firmado de que, depois dos Jogos de Tóquio, apenas uma instituição passaria a representar localmente as modalidades que integram a World Skate.

Dessa forma, a CBSk esteve à frente da preparação da equipe brasileira com 12 competidores (seis homens e seis mulheres) que conquistou três medalhas de prata em Tóquio, com Rayssa Leal, Pedro Barros e Kelvin Hoefler. A CBHP, por sua vez, ficou cuidando das outras 11 modalidades da patinação.

Isso até que, em 2022, a World Skate passou a pressionar as entidades locais, exigindo a existência de apenas um órgão representativo no Brasil. E foi assim que a polêmica se acirrou. A partir daqui, a Máquina do Esporte narra a versão de cada uma das partes.

Questões culturais e políticas

Surgido na Califórnia, nos Estados Unidos, nos anos 1960, o skate é um esporte cujo nome vem do inglês. No Brasil, a palavra foi aportuguesada e passou a definir popularmente tanto a modalidade quanto a prancha dotada de pequenas rodas e eixos, com as quais os praticantes executam manobras com diferentes graus de dificuldade.

À primeira vista, portanto, pode causar certa estranheza o fato de uma entidade chamada World Skate colocar essa modalidade sob o comando da CBHP, ligada ao hóquei e à patinação.

Mas as coisas são mais complexas do que aparentam. A tradução literal de skate para o português equivale justamente a “patins”. Se a transliteração for feita do inglês para o espanhol, a palavra “skateboard” seria o mesmo que “patineta” ou “monopatín”. Nesse caso, seria possível dizer que não falamos de esportes tão distintos, sobretudo se lembrarmos que a Federação Internacional de Futebol (Fifa), por exemplo, tem sob seu guarda-chuva modalidades como futsal, futevôlei e futebol de areia.

O problema, porém, é menos semântico e muito mais cultural e político. E foi a partir daí que cresceram os impasses envolvendo quem deveria representar o skate brasileiro.

A primeira cobrança incisiva feita pela World Skate, para que o Brasil passasse a contar com apenas uma entidade representativa, veio em janeiro de 2022. Em outubro do mesmo ano, a instituição internacional enviou um ultimato, definindo 31 de dezembro de 2023 como data-limite para a definição da polêmica.

Então, na semana passada, veio a desfiliação da CBSk. O presidente da instituição, Eduardo Musa, acusa a World Skate de tomar essa decisão com base em motivações políticas.

“Não somos do mesmo grupo político deles e defendemos voz aos atletas e democracia. Duas coisas que quem está no poder odeia”, afirmou.

De acordo com ele, a relação com a World Skate degradou-se no momento em que a CBSk respondeu por escrito que não aceitava se fundir à CBHP.

“No Brasil, existe uma diferença cultural muito grande entre o skate e os demais esportes. Não fazia sentido essa fusão”, explicou.

Na visão dele, a decisão da entidade internacional “vai quebrar o skate” no Brasil.

“A CBSk foi parte fundamental para o crescimento da modalidade no país. Nem falo da questão olímpica apenas. Soubemos acompanhar o boom do esporte e fazer o mercado se desenvolver”, enfatizou.

O dirigente alegou ainda que a decisão da World Skate seria ilegal e arbitrária, uma vez que não teria sido tomada pela assembleia geral, mas sim pela diretoria. O órgão internacional, por sua vez, argumenta que esse desfecho já estaria sacramentado desde o congresso realizado em 2019.

Musa afirmou que sua entidade chegou a formular uma proposta para resolver o caso.

“A ideia seria a CBSk ficar como representante oficial do skate no país, até por estar à frente da modalidade que é olímpica, e delegar para a CBHP os poderes para cuidar dos assuntos relativos aos demais esportes de patinação e hóquei”, contou.

Com relação à exigência da World Skate de possuir apenas uma entidade representativa por país, Musa ponderou que essa obrigatoriedade não seria propriamente uma regra do Comitê Olímpico Internacional (COI).

“Nos Estados Unidos, por exemplo, existem quatro federações cuidando de diferentes modalidades aquáticas, todas filiadas à World Aquatics“, argumentou.

A regra 29 da Carta Olímpica afirma que “Para ser reconhecida por um CON [Comitê Olímpico Nacional] e aceita como membro de tal CON, uma federação nacional deve exercer uma atividade esportiva específica, real e contínua, ser afiliada a uma FI [Federação Internacional] reconhecida pelo COI e ser governada e cumprir em todos os aspectos com a Carta Olímpica e com as regras da sua FI”. O trecho em questão, que não fala explicitamente sobre a necessidade de haver uma só entidade por país, foi citado na nota oficial da World Skate relativa ao caso.

O que diz a CBHP

O presidente da CBHP, Moacyr Júnior, concordou que a disputa pela representatividade do skate olímpico no Brasil é política.

“É óbvio que é. Sempre foi. Mas é político de ambas as partes, inclusive da CBSk. Em 2017, por exemplo, quando foi feito o acordo político para que eles ficassem à frente do skate para os Jogos de Tóquio, aceitei a situação com serenidade. Ninguém me viu ir à imprensa reclamar. Fui cuidar das outras 11 modalidades que estavam sob minha responsabilidade. Hoje, volto a aceitar com serenidade a decisão da World Skate”, afirmou.

O dirigente alegou que, na última semana, a World Skate publicou decisões sobre dez países em que existia mais de um representante para suas modalidades, incluindo Estados Unidos, Holanda e Canadá.

“O único lugar onde está dando conversa é o Brasil”, destacou.

Ele afirmou que chegou a tomar conhecimento do conteúdo da proposta de acordo feita pela CBSk. Porém, disse que o documento teria sido enviado apenas em dezembro, após o prazo final, que seria em 15 de novembro de 2023.

“Respondi que não aceitava e que minha proposta de acordo estava revogada. Aquilo equivaleria a uma anexação. E os 70 anos de patinação no Brasil? E os 36 anos de existência da CBHP?”, afirmou.

Moacyr Júnior argumentou ainda que o skate já constava no estatuto da CBHP, quando foi incluído nos Jogos Olímpicos. Ainda segundo ele, a modalidade está sob a responsabilidade de entidades de patinação em 130 países-membros da World Skate.

“Por que eu deveria abrir mão de representar o skate? Pega o exemplo do Japão, que é a bola da vez e está conquistando as principais competições internacionais. Ali, o skate sempre esteve com a federação de patinação”, enfatizou.

De acordo com ele, quando o problema da dupla representação passou a ser questionado, a CBHP teria proposto para a CBSk a ideia da criação de uma entidade única.

“Contrataríamos um CEO no mercado para gerir a instituição e teríamos duas vice-presidências. Uma ficaria encarregada de cuidar do skate, recebendo as verbas públicas destinadas para a modalidade olímpica. E outra cuidaria dos 11 demais esportes, sem utilizar essa verba. Mas a CBSk não aceitou”, comentou.

CBHP passará a ser Skate Brasil

A resolução da World Skate publicada na semana passada prevê as criações de novas entidades para gerir suas modalidades. Elas utilizarão as denominações “Skate + o nome do país”.

Aqui, portanto, será chamada de Skate Brasil. A CBHP já prepara a mudança de estatuto para cumprir essa determinação.

“Não tem volta”, ressaltou Moacyr Júnior.

A CBSk ainda acredita que pode reverter essa decisão. A entidade já apelou ao Tribunal Arbitral Internacional (CAS, na sigla em inglês) e realizará uma reunião com advogados para definir quais medidas judiciais adotará no Brasil.

Musa teme que a polêmica possa afetar o desempenho da equipe de skate que representará o Brasil nos Jogos de Paris.

“Espero que não tenha impacto. Mas é difícil dizer que não haverá. Janeiro já está perdido. Nesse momento, em que deveríamos estar organizando inúmeras questões práticas, estamos fazendo reuniões com atletas para tratar de política”, afirmou.

Atualmente, os preparativos do skate para Paris 2024 estão sendo levados adiante pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB). Nesta quarta-feira (17), seria realizada uma reunião da entidade com atletas e membros do staff do time, buscando um desfecho para essa polêmica.

Em março do ano passado, segundo Musa, atletas da modalidade chegaram a enviar uma carta ao COB, solicitando um posicionamento do comitê a respeito do caso. No mês de outubro, um novo questionamento teria sido feito.

“Até hoje, não recebemos nenhuma resposta”, disse o dirigente.

Procurado, o COB informou, por meio de nota, que “está sempre aberto ao diálogo com atletas e toda comunidade do skate no Brasil”.

“Desde 2017, o COB impeliu esforços para que houvesse um acordo entre as entidades, o que não foi possível. Porém, o COB não tem a prerrogativa de interferir na decisão da Federação Internacional, sendo passível de punição qualquer ação nesse sentido”, destacou a entidade.

O COB também afirmou que toda a preparação do skate está mantida.

“O Comitê Olímpico do Brasil já criou uma força-tarefa para conduzir a preparação dos atletas para os Jogos Olímpicos de Paris e seguirá o planejamento definido anteriormente, sem prejuízo aos classificados ou aos que ainda buscam qualificação”, afirmou a nota.

Verba milionária

A Lei Agnelo/Piva entrou em vigor em 2001 e garante o repasse de 2% de tudo o que é arrecadado pelas loterias federais para o COB, que leva 85% do total, e para o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), que recebe os 15% restantes.

Esse montante é depois distribuído às confederações que cuidam das modalidades olímpicas. Neste ano, o skate tem direito a pouco mais de R$ 10 milhões provenientes desta lei.

Com a resolução da World Skate, esses recursos não serão mais encaminhados à CBSk. Esse é um dos pontos criticados pela entidade, em seu posicionamento oficial.

Sobre o orçamento do Skateboarding Olímpico para 2024, é importante destacar que foi a Confederação Brasileira de Skateboarding e seus skatistas que conquistaram o 4º maior orçamento deste ano dentre as confederações olímpicas filiadas ao Comitê Olímpico Brasileiro. A CBSk celebrou um contrato com o COB tratando da utilização desta verba, ou seja, existe um negócio jurídico vigente e que deve ser respeitado por ambas as partes, uma vez que os próprios skatistas, além de inúmeros profissionais que trabalham com o Skateboarding no Brasil, com base nesta garantia, estão desempenhando as suas funções na preparação para os Jogos Olímpicos, assim como para as competições da modalidade em todo o Brasil.

Nota da Confederação Brasileira de Skateboarding

A CBSk alegou que “com base em critérios técnicos e objetivos, é a líder do ranking de prestação de contas do COB”, enquanto “a CBHP está proibida de receber recursos públicos”.

Moacyr Júnior rebateu, dizendo que sua entidade só não recebe dinheiro do COB porque não contava, até então, com modalidades olímpicas.

“Desde novembro do ano passado, já dei entrada nos pedidos de certidões para poder regularizar a situação. É uma questão de semanas até estarmos aptos a contar com esse recurso”, encerrou.

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