Sancionada em 6 de agosto de 2021, a lei federal 14.193 trouxe mudanças profundas ao esporte mais popular do Brasil. Foi ela a responsável por regulamentar o funcionamento das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).
De lá para cá, muita coisa mudou no mercado e grandes clubes tiveram seus departamentos de futebol adquiridos por imensos grupos de investidores, casos de Botafogo, Vasco, Cruzeiro, Coritiba e Bahia.
Ainda que envolvam valores, termos e percentuais distintos, todos esses contratos têm algo em comum: são SAFs que atuam no modelo fechado, em que o clube elege um investidor específico para assumir o controle do seu futebol.
O predomínio desse modelo pode criar a impressão de que ele seria o único possível. Longe disso. A lei 14.193/2021 já previa a existência de SAFs com capital aberto, que são aquelas que podem negociar suas ações no mercado de capitais e receber dinheiro de diferentes investidores, de qualquer lugar do país.
Passados pouco mais de dois anos desde que a legislação entrou em vigor, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda e responsável por disciplinar esse setor da economia, enfim publicou um parecer de orientação relativo a esse tema.
Procurado, o órgão informou que o documento não tem caráter normativo, mas busca, segundo as palavras de seu presidente, João Pedro Nascimento, “orientar investidores e participantes do mercado sobre instrumentos do mercado de capitais disponíveis para a SAF, assim como apresentar a visão da CVM a respeito de como a lei 14.193/21 (lei das SAFs), a lei 6.404/76 (lei das Sociedades por Ações) e a regulamentação já editada pela autarquia podem ser integradas harmonicamente”.
Ou seja: o parecer equivale à opinião da CVM a respeito de como deveria ocorrer a atuação das SAFs de capital aberto no mercado de ações. Na prática, porém, vale lembrar que o órgão é também quem vai fiscalizar esse mercado.
Por ora, não há no Brasil nenhum clube que se enquadra nesse modelo de capital aberto.
“Desde 2021, essa possibilidade já existia, mas ninguém aderiu. Talvez até por falta de segurança jurídica sobre como isso funcionaria”, opinou Paulo Portuguez, sócio da Jantalia Advogados e especializado em direito bancário e administrativo sancionador.
Mudanças no mercado?
De acordo com Nascimento, este seria o momento da indústria do futebol conhecer e compreender o segmento regulado pela autarquia.
“As SAFs, assim como as companhias abertas registradas junto à CVM e demais agentes de mercado devidamente regulados, dispõem de múltiplos instrumentos que permitem a captação de recursos da poupança popular. Captação esta que pode ser bem útil para diversas finalidades, inclusive a realização de investimentos, a restruturação de dívidas e de financiamento, e concretização de projetos na economia real. Forma-se um ciclo virtuoso de crescimento econômico, com geração de emprego e renda, que traz benefícios para o Brasil como um todo”, afirmou.
A publicação do documento, neste momento, tanto pode significar algo corriqueiro como também pode ser uma sinalização para investidores e clubes que estavam receosos em enveredar pelo mercado de capitais.
Marcelo Godke, advogado especializado em direito empresarial e mercado de capitais, tende a crer na segunda hipótese.
“Existe um movimento de vários clubes que desejam se tornar SAF ou mesmo daqueles que já são, buscando informações sobre esse tema”, disse o especialista, que também é professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e do Insper.
Como funciona
O primeiro passo para um clube ter seus ativos negociados no mercado de valores mobiliários é que ele possua uma SAF constituída. Em seguida, deverá cumprir uma série de requisitos, revisando sua governança, criando um conselho de administração e deixando claro ao mercado que ela será bem gerida.
Depois, deverá se registrar na CVM como uma companhia aberta. A análise costuma ser rigorosa e envolve, inclusive, um processo sigiloso de coleta de investidores. Trata-se de uma busca informal e que não torna o investimento obrigatório. O objetivo desse procedimento é checar o interesse do mercado no negócio e assim reduzir a incerteza em torno das operações financeiras a serem feitas pela SAF.
Só depois de cumpridas essas etapas é que a SAF poderá fazer a oferta pública de ações, também conhecida no mercado pela sigla em inglês IPO.
Portuguez lembra que a legislação em vigor abre outra oportunidade para SAFs de clubes médios e pequenos, cujo faturamento anual não ultrapassa R$ 40 milhões. Elas poderão realizar captação de recursos de maneira eletrônica, via crowdfunding, em operações supervisionadas pela CVM.
“É uma forma mais simples para essas equipes se capitalizarem”, explicou.
Obrigações
Portuguez acredita que a entrada das SAFs no mercado de capitais representará uma grande ruptura no modelo de gestão do futebol brasileiro.
“Elas terão de convencer o público e os investidores de que serão bem geridas e darão retorno financeiro”, analisou.
“Os clubes serão obrigados a se profissionalizar e ser administrados como empresas para dar lucro. E isso significa impor limites à ‘cartolagem'”, ponderou Godke.
Os especialistas salientam que, ao ingressar no mercado de capitais, as SAFs não estabelecerão, elas próprias, o preço de suas ações. Isso será definido por outros fatores, que incluem gestão, transparência, resultados financeiros e a boa imagem pública da instituição.
“Transparência e informação são a base do funcionamento regular do mercado de capitais. E as SAFs precisarão compreender essas questões, em especial no que diz respeito às informações que devam ser objeto de divulgação ao mercado”, afirmou Nascimento.
Um ponto relevante do parecer de orientação da CVM diz respeito à hipótese de um investidor participar de mais de uma Sociedade Anônima do Futebol.
“De acordo com o artigo 4º da lei da SAF, por exemplo, o acionista controlador de uma SAF não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra SAF. No caso de um acionista que detiver mais de 10% das ações votantes de emissão de uma SAF e, ao mesmo tempo, for titular de qualquer número de ações de emissão de outra SAF, independentemente da classe de ação, tal acionista não terá direito a voz ou voto nas assembleias gerais de todas essas companhias e, ainda, não poderá participar de suas administrações”, destacou Nascimento.
Riscos
O mercado de capitais é um ambiente que, muitas vezes, pode se tornar turbulento para algumas empresas e investidores. No caso do futebol, universo que envolve paixões e ódios exacerbados, os humores tendem a ser afetados por acontecimentos dentro de campo e nos próprios bastidores dos clubes.
Diante da possibilidade das SAFs ingressarem no mercado de capitais, resta saber se existe algum meio de impedir que os fatores acima citados afetem o valor das ações dessas instituições. Com relação a isso, os especialistas são unânimes.
“Não há como blindar as SAFs dessas situações”, admitiu Portuguez.
Godke, por sua vez, afirma que o mercado de capitais, de um modo geral, está sujeito a esse tipo de impacto e lembra que a cotação das ações na bolsa “reflete o valor intrínseco que o investidor atribui a uma companhia”.
“Não é o preço da ação que quebra a empresa, mas sim sua gestão. Se uma SAF não consegue se reinventar constantemente para atrair investimentos e ser competitiva, ela não irá se valorizar”, ponderou.
Transparência
De acordo com Godke, as SAFs de capital aberto terão a obrigação legal de fazer a divulgação de fatos relevantes para os investidores. “Suponhamos, por exemplo, um problema que possa abreviar a carreira de um jogador valioso do time. Essa informação interessa ao mercado e deve ser comunicada”, explicou.
O presidente da CVM reconhece que “a atividade do futebol se sujeita a intenso acompanhamento de jornalistas, influenciadores digitais, torcedores e outros agentes que geram, diariamente, uma quantidade significativa de informações, notícias, reportagens, relatos e boatos, com propósitos variados”.
“A CVM não tem a expectativa de que a SAF e seus administradores se manifestem em reação a qualquer notícia ou boato, sobretudo as produzidas no contexto nitidamente esportivo, mas nem por isso deixará de exigir que sejam cuidadosamente avaliados os atos e fatos que tenham o condão de gerar os efeitos previstos no art. 2º da Resolução CVM 44 e, quando aplicável, promover as devidas manifestações”, finalizou Nascimento.