Um espectro ronda o futebol da Europa, com o potencial concreto de abalar as cadeias de poder no esporte mais popular do mundo.
Esse espectro é um sindicato internacional e atende pelo nome de Federação Internacional das Associações de Futebolistas Profissionais (Fifpro). Sua sede fica na pacata Hoofddorp, cidade de pouco mais de 77 mil habitantes, localizada no norte dos Países Baixos (modo como a Holanda agora faz questão de ser chamada).
A entidade congrega, atualmente, 66 sindicatos nacionais de jogadores, além de outros quatro que aguardam ser integrados ao grupo. Ao todo, a Fifpro estima representar em torno de 65 mil atletas profissionais de futebol no mundo.
Bem menos famosa do que sua contraparte patronal, a Federação Internacional de Futebol (Fifa), que organiza a Copa do Mundo, dita as regras no esporte e até virou nome de jogo eletrônico de sucesso global, a Fifpro ganhou os holofotes da imprensa internacional na semana passada, por conta de uma polêmica envolvendo o Mundial de Clubes de 2025.
Esta foi a primeira vez que uma organização internacional decidiu peitar publicamente a Fifa com tamanho ímpeto nas últimas décadas. E esse movimento, que, mesmo não aparentando, tem seu forte componente de luta de classes, já que versa sobre direitos trabalhistas, ocorre em um momento em que a entidade patronal vê seu monopólio no futebol ser ameaçado de maneira real, como nunca antes na história.
A polêmica
A polêmica da Fifpro com a Fifa diz respeito ao Mundial de Clubes 2025, que reunirá 32 times e está previsto para ocorrer entre 15 de junho e 13 de julho do ano que vem, nos Estados Unidos.
Esses meses foram escolhidos pela Fifa porque coincidem justamente com o período de férias no futebol europeu (as principais ligas costumam retomar os jogos apenas em agosto).
Apesar de ser conveniente para a Fifa, a escolha da data não agradou alguns sindicatos nacionais de jogadores, em especial a Associação dos Futebolistas Profissionais (PFA, na sigla em inglês), da Inglaterra, e a União Nacional de Jogadores Profissionais, da França.
Com apoio da Fifpro, as duas ingressaram com uma ação no Tribunal do Comércio de Bruxelas, na Bélgica, solicitando que a questão seja analisada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), instância onde a Fifa já sofreu graves reveses, sendo que o pior deles foi justamente o que passou a ameaçar seu monopólio.
Com o Mundial de Clubes de 2025 reunindo 32 equipes, os atletas da elite do futebol mundial estarão sujeitos a três anos ininterruptos de competições da Fifa, ou de suas associadas, sendo realizadas no meio do ano. Em 2024, são realizadas a Euro e a Copa América. Já daqui a dois anos haverá a Copa do Mundo 2026, que terá como sedes Estados Unidos, Canadá e México.
As entidades sindicais da Inglaterra e da França argumentam que essa situação representa uma afronta à Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (UE), no que diz respeito às questões trabalhistas.
Essa legislação garante a todos os empregados que atuam nos países que formam o bloco econômico o direito a um período anual de férias remuneradas, além de proibir situações como trabalho forçado ou em condições insalubres.
A ação ainda não foi julgada. Vale lembrar, em todo caso, que, apesar de ser movido por duas associações nacionais de futebolistas, esse processo pode ter reflexo em todo o futebol do continente, já que o TJUE é o órgão judicial máximo da União Europeia.
Uma eventual sentença favorável aos sindicatos teria repercussões não apenas para Manchester City, Chelsea e PSG, os representantes de Inglaterra e França no Mundial de Clubes 2025, mas também para Atlético de Madrid e Real Madrid, da Espanha; Internazionale e Juventus, da Itália; Bayern de Munique e Borussia Dortmund, da Alemanha; Red Bull Salzburg, da Áustria; e Benfica e Porto, de Portugal.
E, dependendo de sua abrangência, não é possível saber até que ponto uma decisão do TJUE favorável aos sindicatos poderia ameaçar a realização de outros torneios da Fifa e das confederações continentais, incluindo Copa do Mundo, Copa América e Euro.
A Fifpro foi fundada em dezembro de 1965, por representantes de locais como Escócia, França, Inglaterra, Itália e Países Baixos. Era, basicamente, uma entidade europeia. Seu primeiro congresso foi realizado em Londres, na Inglaterra, em 1966, mesmo ano em que o país sediou a Copa do Mundo.
Atualmente, ela conta com representantes em todos os continentes. Seu último congresso foi realizado no Uruguai, em 2022.
Atritos antigos
Inicialmente, os esforços da Fifpro se concentravam na luta pela valorização salarial dos atletas e a questão da liberdade dos jogadores poderem escolher em que clube atuariam após o término do contrato.
Com base nessa premissa, a entidade foi a principal apoiadora do atleta belga Jean-Marc Bosman, em sua disputa judicial com o Standard de Liège, na década de 1990, caso cujo desfecho mudou para sempre a correlação de forças no futebol mundial, representando o primeiro grande abalo no poderio da Fifa e de suas entidades associadas.
Bosman iniciou sua carreira no clube da Valônia em 1983, onde se profissionalizou, mas nunca foi tido como craque. Depois de uma breve passagem pelo rival RFC de Liège, o atleta recebeu uma oferta, em 1990, para atuar no Dunkerque, da França, que atualmente disputa a Ligue 2.
À época, Bosman tinha 25 anos de idade e se empolgou com a proposta. Porém, a diretoria do Standard de Liège resolveu dificultar a negociação e estabeleceu uma multa de £ 500 mil para liberar o jogador.
O valor pode parecer ínfimo para os padrões atuais, em que jogadores de futebol são negociados por somas que ultrapassam o equivalente a R$ 500 milhões. Mas não era bem assim.
Mesmo com a atualização monetária, tomando-se por base a inflação do período da libra esterlina, que foi de 138,31%, o valor pedido pelo Standard de Liège seria de cerca de £ 1.191.557,64 (ou R$ 8.234.854,85).
Contudo, para os padrões da época (Romário, por exemplo, foi vendido pelo Vasco ao PSV, da Holanda, em 1989, por US$ 6 milhões) e para a realidade do Dunkerque, a quantia era impraticável. Além de barrar a negociação do atleta, o clube belga decidiu cortar seu salário em 75%, derrubando-o para £ 500 mensais.
Bosman, então, resolveu processar o Standard de Liège, a Federação Belga de Futebol e a União das Associações Europeias de Futebol (Uefa), acusando-os de violar o Tratado de Roma, de 1957, que estabeleceu as regras de funcionamento da União Europeia. A ação teve apoio da Fifpro.
Em 1995, o TJUE deu ganho de causa ao jogador, mas a repercussão do caso foi muito além desse episódio específico, uma vez que derrubou os limites para contratações, pelos clubes europeus, de atletas oriundos de outros países do bloco econômico.
Conhecida como Lei Bosman, a sentença abriu caminho para que os principais clubes da UE, especialmente na Inglaterra, Espanha, França, Itália e Alemanha, pudessem concentrar em seus elencos os principais craques do planeta, transformando-se em potências globais.
O próprio peso que competições do continente adquiriram no mundo, em especial a Champions League, da Uefa, são decorrentes dessa mudança no equilíbrio de forças ocasionada pela Lei Bosman, que teve participação da Fifpro.
Monopólio ameaçado
Se, nos anos 1990, a Fifpro foi apenas uma coadjuvante no primeiro caso que abalou as estruturas do futebol mundial, neste ano ela se tornou protagonista em um embate que ocorre no momento em que o monopólio da Fifa sobre o esporte mais popular do planeta passa a ser seriamente ameaçado.
Esse movimento ganhou força a partir do fim do ano passado, quando o mesmo TJUE condenou a Fifa e a Uefa, proibindo as duas entidades de ameaçarem com sanções os clubes (especialmente Real Madrid e Barcelona, principais entusiastas da ideia) que articularam a criação da Superliga Europeia.
Embora o torneio com equipes de elite do continente ainda não tenha saído do papel (mas já começou a se organizar, tanto que tem logomarca e nome registrados pela empresa A22 Sports Management) e as repercussões ainda estejam restritas à UE, a decisão pode ter reflexos em outras partes do mundo, representando uma “Nova Lei Bosman”, conforme analisou, à época, a Máquina do Esporte.
Atualmente, clubes de futebol estão sujeitos a uma série de regras da Fifa para poderem competir no futebol profissional. Isso inclui, por exemplo, a imposição feita às equipes maiores e com grandes torcida, que têm de disputar torneios pouco rentáveis organizados por federações locais, contra adversários de menor nível técnico.
Desde que o futebol se profissionalizou no mundo, na primeira metade do século passado, a Fifa fez questão de manter o controle sobre toda a cadeia do esporte. Clubes ou federações que não se adequam às suas determinações podem sofrer sanções, ficando impedidos de disputar competições oficiais ou mesmo realizar transações de jogadores. As restrições costumam atingir atletas, que podem inclusive ser banidos do esporte pela entidade.
Um exemplo claro do poder que a Fifa possui pôde ser observado no começo deste ano, quando a entidade chancelou Ednaldo Rodrigues como presidente legítimo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
O dirigente havia sido afastado do cargo pela Justiça do Rio de Janeiro, em dezembro do ano passado, mas a Fifa e a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) ameaçaram impor sanções ao futebol brasileiro, com a seleção sendo excluída dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 e os clubes do país ficando de fora da Copa Libertadores e da Copa Sul-Americana. Com isso, Ednaldo foi reconduzido à presidência da CBF, amparado também em uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF).
Se a lógica que passa a vigorar na UE, referente à Superliga, passar a valer em outros continentes, nada impedirá que clubes mais fortes e populares passem a se organizar em ligas autônomas, sem terem de se sujeitar às regras da Fifa e das federações e confederações associadas.
Esse cenário pode parecer improvável atualmente, mas já vigora em diversos outros esportes, em que as principais competições são promovidas por organizações independentes, geridas pelos próprios times. É o caso, por exemplo, das principais ligas profissionais dos Estados Unidos, como NFL, NBA e MLB.
Nova disputa judicial e futuro incerto
Como a Máquina do Esporte noticiou em março deste ano, o governo do presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, resolveu apoiar o Relevent Sports Group no processo movido pela empresa contra a Fifa e a Federação de Futebol dos Estados Unidos (US Soccer) na Suprema Corte do país.
A disputa teve início em 2018, quando a companhia firmou um contrato de 15 anos com a LaLiga, com o objetivo de promover partidas oficiais da primeira divisão do Campeonato Espanhol em território norte-americano.
Naquele ano, a partida escolhida seria entre Barcelona (que contava com craques como Lionel Messi e Luis Suárez) e Girona. Porém, a US Soccer apelou à Fifa para que não sancionasse esse confronto, com base no princípio de que jogos oficiais de uma liga nacional devem ocorrer no território onde a associação se localiza.
A entidade máxima do futebol mundial endureceu o jogo, fazendo com que o Barcelona desistisse da ideia de atuar na Flórida. A empresa, então, resolveu ingressar com a ação contra a US Soccer, acusando-a de conspirar com a Fifa, a fim de impedir que clubes ou ligas estrangeiras realizassem partidas nos Estados Unidos.
Todos esses movimentos recentes dão indícios de que a fortaleza antes inexpugnável da Fifa pode estar ruindo.
Por enquanto, é quase impossível fazer afirmações sobre as reais chances da Fifpro obter uma sentença favorável na ação movida contra o Mundial de Clubes de 2025, no TJUE. Em todo caso, os desfechos das polêmicas anteriores não deixam de ser animadores para a entidade sindical.
Vale observar que o universo do futebol está em constante transformação. Na década de 1950, por exemplo, a PFA, uma das entidades fundadoras da Fifpro, então presidida pelo jogador Jimmy Hill, fazia campanhas para abolir o limite salarial de £ 20 semanais, que vigorou nas competições profissionais da Inglaterra até 1961.
Ao mesmo tempo em que a derrubada desse limite em diferentes países permitiu que muitos jogadores profissionais pudessem desfrutar de padrões de vida mais dignos, a mudança conquistada pelos sindicalistas da bola abriu caminho para que salários astronômicos passassem a vigorar, na medida em que o futebol se desenvolveu e passou a mover grandes somas de dinheiro.
Isso gerou distorções gigantes em todo o mundo, e não apenas dentro do esporte. No Reino Unido, enquanto o belga Kevin De Bruyne ganha £ 400 mil mensais no Manchester City (R$ 2.759.880, pela cotação atual), o salário médio de um médico no país está em torno de £ 75 mil anuais (R$ 517.425).
Ao mesmo tempo em que o brasileiro Neymar recebe € 160 milhões anuais (R$ 933.232.000, quantia que supera as receitas brutas de qualquer um dos clubes da Série A do Brasileirão, exceto o Flamengo) no Al-Hilal, da Arábia Saudita, 88% dos jogadores profissionais que atuam no país ganham até R$ 5 mil.
Com o novo grande embate da Fifpro com a Fifa relativo ao Mundial de Clubes de 2025, grandes transformações podem surgir no esporte. Pode ser que o futebol esteja naquela fase em que o velho mundo está morrendo, mas o novo ainda tarda a nascer. Ou pode ser que tudo mude, para permanecer exatamente como está.