Não é dúvida para ninguém que o Brasil é um dos países mais tradicionais do automobilismo mundial. Na Fórmula 1, principal categoria do esporte a motor, são oito títulos (dois de Emerson Fittipaldi, três de Nelson Piquet e três de Ayrton Senna), o que dá ao país o status de terceiro maior vencedor da história, atrás de Reino Unido (20) e Alemanha (12).
Além disso, para muitos especialistas, o Brasil é o país onde nasceu o maior piloto de todos os tempos, o paulistano Ayrton Senna, que dominou a F1 entre o fim da década de 1980 e o começo da década de 1990 ao lado do francês e maior rival Alain Prost.
Só que tudo isso não bastou para que o país tivesse um piloto titular na categoria rainha do automobilismo mundial nas últimas sete temporadas. Aliás, desde a morte de Senna, ocorrida há 30 anos, no GP de San Marino de 1994, apenas Rubens Barrichello e Felipe Massa conseguiram ter destaque na F1, ambos com 11 vitórias e o status de vice-campeões mundiais.
Com exceção dos dois, muitos nomes nacionais passaram pela categoria com pouco ou nenhum destaque, mas a situação se agravou mesmo com a aposentadoria de Massa no final de 2017. Fazia décadas que o país não deixava o grid, mas foi o que aconteceu a partir do início da temporada de 2018.
De lá para cá, apenas Pietro Fittipaldi defendeu as cores brasileiras na F1. Foram apenas duas corridas em 2020, em substituição a Romain Grosjean, após um grave acidente que quase tirou a vida do francês no GP do Bahrein daquele ano. Reserva da Haas, o neto de Emerson Fittipaldi disputou as duas últimas provas da temporada, mas, com um carro para lá de ruim, não conseguiu grande coisa.
“Podemos falar que há um tripé que pode explicar isso. Em primeiro lugar, o Brasil fraco economicamente, com a desvalorização da moeda nacional e sem categorias de monopostos sólidas para revelar pilotos. Além disso, o funil ficou mais estreito para ingressar na F1. Nos anos dourados de Emerson, Nelson e Ayrton, eram muito mais que 20 carros, e existiam equipes pequenas que promoviam talentos emergentes. Hoje em dia, são 20 cadeiras, sendo que boa parte delas já está ‘reservada’ para pilotos pagantes”, destacou Luis Ferrari, sócio-fundador da Ferrari Promo, agência-boutique com ênfase no mercado do esporte a motor, e colunista da Máquina do Esporte.
“E, por fim, houve a entrada de ‘dinheiro novo’, ou seja, países que não chegavam perto da Fórmula 1 começaram a despontar com mais força. Nos últimos anos, vimos pilotos correndo com dinheiro russo, a Tailândia com o Albon [Alex Albon, piloto da Williams], teve indiano batendo na trave, a forte presença do interesse chinês, árabe e do próprio Estados Unidos, que eram periféricos no mundo do automobilismo”, completou.
Queda do interesse
Sem um piloto brasileiro no grid, o que já era difícil de manter após a morte de Ayrton Senna, ficou praticamente impossível: o interesse do brasileiro comum pela Fórmula 1. Nem as presenças de ídolos mundiais como Lewis Hamilton, Sebastian Vettel, Fernando Alonso e, mais recentemente, Max Verstappen, foram suficientes. E tudo caiu. Desde a audiência até o interesse dos patrocinadores, passando pela Globo, que decidiu deixar as transmissões no fim de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, com a Band assumindo os direitos a partir de 2021.
Claro que há exceções, como o terço final da temporada do primeiro ano da Band como dona das transmissões no mercado brasileiro. A batalha entre Lewis Hamilton e Max Verstappen, que teve o britânico vencendo no Brasil e comemorando no melhor estilo Ayrton Senna, e que acabou decidida na última volta da última prova, dando ao holandês seu primeiro título mundial (com muita polêmica até hoje), é um exemplo de um momento em que a F1 voltou a gerar um pouco do brilho nos olhos do torcedor brasileiro que se via antigamente.
Mas é claro que isso não chega nem perto do interesse que a categoria pode voltar a gerar a partir do momento em que há novamente um brasileiro para torcer. A assinatura de Gabriel Bortoleto para ser titular da Kick Sauber, que, a partir de 2026, correrá como equipe de fábrica da Audi, pode novamente modificar as manhãs de domingo no mercado brasileiro.
“Este é um dos projetos mais empolgantes do esporte a motor, se não de todos os esportes. Entrar em uma equipe que combina a rica história no esporte a motor de Sauber e Audi é uma verdadeira honra. Meu objetivo é crescer com este projeto ambicioso e alcançar o topo do automobilismo”, afirmou o 32º piloto brasileiro a chegar à Fórmula 1.
A nova esperança
Mas quem é Gabriel Bortoleto?
Nascido em São Paulo (SP), em outubro de 2004, Gabriel Bortoleto Oliveira tem 20 anos. Como a maioria dos pilotos, iniciou sua carreira no kart em 2012 e foi fazer sua estreia em um monoposto em 2020, no Campeonato Italiano de Fórmula 4. De lá para cá, tudo aconteceu muito rápido.
Em 2021, o paulistano começou a disputar a Fórmula Regional Europeia. Depois, no final de 2022, passou a ter a carreira gerida por ninguém menos que Fernando Alonso, bicampeão de F1 e que ainda está na ativa aos 43 anos, pilotando para a Aston Martin.
Em 2023, foi a vez de estrear na Fórmula 3. Já no primeiro ano, Bortoleto se sagrou campeão. E, mais do que isso, assinou com o Programa de Desenvolvimento de Pilotos da McLaren, uma das equipes mais tradicionais da F1 e onde seu ídolo nas pistas, Ayrton Senna, fez história com três títulos mundiais.
A relação com Senna, aliás, é próxima. O capacete utilizado por Bortoleto é muito parecido com o do tricampeão, e o novato já correu inclusive com o famoso “S” da Marca Senna estampado.
Veio então 2024 e a chance de pilotar na Fórmula 2, o último degrau de acesso à Fórmula 1. Também em seu primeiro ano, Bortoleto novamente chamou atenção, em especial no GP da Itália, onde largou na 22ª e última posição para vencer a prova e entrar para a história como o primeiro a conseguir tal feito na F2. No momento, restando apenas duas etapas para o fim da temporada, é o líder na tabela de classificação.
O último passo foi o teste realizado com o MCL 36, carro com o qual a McLaren disputou a temporada de 2022 da F1. Os resultados de Bortoleto foram os melhores já obtidos por um novato, o que impressionou a escuderia britânica.
A partir daí, a McLaren passou a ver o brasileiro como uma séria possibilidade para ser titular da equipe em 2027 (já que Lando Norris e Oscar Piastri, os atuais titulares, têm contratos já assinados para 2025 e 2026), aceitando liberá-lo para a Kick Sauber por apenas dois anos (2025 e 2026). A Kick Sauber, por sua vez, queria tirar o brasileiro da rival e tê-lo por pelo menos quatro anos, ou seja, até 2028.
Na semana passada, a McLaren anunciou o fim da ligação com o piloto, liberando-o de seu Programa de Desenvolvimento de Pilotos no fim da atual temporada “para perseguir uma nova oportunidade na carreira dele”. Era o último empecilho sendo tirado da frente. Bortoleto será companheiro do alemão Nico Hulkenberg na Kick Sauber a partir de 2025.
“Estamos atualmente testemunhando uma mudança geracional na Fórmula 1, com jovens pilotos causando impacto imediato. Ao assinar com Gabriel Bortoleto, asseguramos um desses talentos de ponta. A contratação dele ressalta a estratégia de longo prazo da Audi e comprometimento com a Fórmula 1”, disse Gernot Döllner, presidente da Sauber.
“O Gabriel Bortoleto fez o caminho ideal, uma trajetória muito sólida no exterior, e chamou atenção de fato na Fórmula 3 e na Fórmula 2, com direito a título na estreia na primeira e a possibilidade real de título na estreia na segunda”, lembrou Luis Ferrari.
Fora das pistas
Se dentro das pistas, Gabriel Bortoleto vem sendo considerado a nova esperança do automobilismo nacional, fora delas o piloto também tem se destacado com acordos comerciais, inclusive com empresas brasileiras que já investem nele.
Atualmente, Bortoleto possui contratos de patrocínio com duas empresas nacionais, o Banco BRB (segmento financeiro) e a Porto (seguros), e outras internacionais, como Snapdragon (tecnologia), Barthelemy (moda) e Ebury (fintech especializada em câmbio e pagamentos internacionais).
“Apoiar pilotos como Gabriel Bortoleto é muito importante para a Porto. Nos últimos 79 anos, construímos a nossa essência baseada na cultura do automóvel, e a Fórmula 1 é o ápice disso. É um território extremamente relevante para nós, além de ser uma forma de contribuir para o desenvolvimento do esporte e incentivar o sonho de ver novamente um brasileiro na elite do automobilismo brasileiro”, comentou Luiz Arruda, vice-presidente comercial e de marketing da Porto.
Com a chegada à F1, a tendência é de que as renovações com essas marcas sejam naturais, e novas empresas passem a olhar para o brasileiro com outros olhos.
Além disso, a volta de um brasileiro ao grid e que poderá até brigar por vitórias (a última foi de Rubens Barrichello, pela Brawn GP, no GP da Itália de 2009) com a entrada de fato da Audi em 2026 e uma série de mudanças de regras, deve voltar a aquecer o mercado da F1 no Brasil, atraindo até os fãs saudosos dos bons tempos de Emerson, Piquet e Senna.
Some-se a isso o fato da categoria poder voltar para as mãos da principal emissora do país, a Globo, em 2026, e o combo para alavancar novamente a Fórmula 1 por aqui estará completo. O recorde de público no Autódromo de Interlagos no GP São Paulo disputado no último fim de semana e a empolgação em ver o carro que deu o bicampeonato mundial a Ayrton Senna em 1990 sendo pilotado por Lewis Hamilton deixaram claro que o amor pela categoria nunca terminou.
“Assim como os argentinos abraçaram o ‘projeto’ Franco Colapinto na Fórmula 1, existe uma corrente em torno do Gabriel, com diversas marcas. Até quem não o patrocina efetivamente, quer um brasileiro de volta à F1 porque sabe que isso é bom para o mercado. O mercado todo do automobilismo floresce quando você tem um piloto entre os 20 possíveis na principal categoria. As corridas ficam em alta, a cobertura tem mais matérias fora do nicho do esporte e por aí vai”, afirmou Luis Ferrari.
“Tomara que ele perdure na categoria por muito tempo. A gente sabe que, na Fórmula 1, é difícil de entrar, mas é muito mais difícil sobreviver ao segundo, ao terceiro ano. Então, que ele continue se desenvolvendo e possa mostrar a mesma curva de evolução e aprendizado que mostrou na Fórmula 3 e na Fórmula 2. O sucesso dele vai favorecer todo o ecossistema do esporte a motor no Brasil”, completou.
Não dá para saber se Gabriel Bortoleto tem noção do tamanho da responsabilidade que passará a carregar a partir de março de 2025 no cockpit da Kick Sauber. Mas para um piloto que conquistou tudo que conquistou até o momento, esse sucesso na principal categoria do automobilismo mundial parece realmente ser questão de tempo.