Há alguns dias, a Deloitte divulgou a 28ª edição do relatório Money League, que elenca e detalha as fontes de receita dos trinta clubes de futebol de todo o mundo que tiveram o maior faturamento na última temporada (com base no calendário europeu), oriundo de receitas recorrentes, sem contar as de transferências de jogadores.
Dentre os destaques, tivemos o Flamengo figurando como o primeiro clube não europeu, desde o Inter Miami na temporada 1996/1997, a aparecer na lista, e o Real Madrid, alcançando a expressiva marca de € 1 bilhão de faturamento. Dois feitos expressivos, mas não é deles que vamos falar hoje. O foco é entendermos o que a repetida ausência de clubes brasileiros na lista significa e quais perspectivas e aprendizados podemos ter analisando o cenário esportivo do país. Mas, antes, vamos olhar o relatório de uma forma um pouco mais detalhada.
Um olhar sobre os 30 clubes que mais faturaram no mundo na temporada 2023/2024
Sem grandes surpresas, a lista é composta de uma mescla entre clubes tradicionais europeus e outros não tão tradicionais, mas que receberam investimentos vultosos de fundos multimilionários nos últimos anos e conseguiram converter isso em geração de receita recorrente. O Flamengo, conforme destaquei anteriormente, aparece praticamente como um penetra na lista por ser o único de fora da Europa. O Top 30 tem representantes das seis principais ligas europeias, com amplo predomínio da Premier League (Inglaterra), que conta com 14 representantes.
O relatório ajuda a reafirmar a relação cada vez mais sinérgica no futebol entre a capacidade de monetização e as conquistas dentro de campo. O último clube que venceu a Champions League e não aparece listado entre os 30 maiores geradores de receita da temporada é o Porto, campeão do torneio na temporada 2003/2004, mais de 20 anos atrás. Por outro lado, mesmo considerando os clubes que mais faturam no mundo, é possível concluir que há espaço para muito mais quando se trata de geração de receitas no futebol. Os 30 clubes somados não geraram, na última temporada, receita suficiente sequer para entrar no ranking Fortune 500, lista anual da revista Fortune que lista as 500 maiores empresas do mundo em faturamento.
Na figura abaixo, é possível ver a lista dos clubes na íntegra.
As principais fontes de receita recorrente do Top 30 e dos clubes brasileiros
A Deloitte divide receita recorrente entre três grandes grupos:
- Matchday (venda de ingressos, hospitalidade e programas de associação);
- Comercial (patrocínios, venda de produtos oficiais e outras operações não ligadas à atividade do futebol)
- Transmissão (direitos de transmissão e premiações pelas participações nos principais campeonatos)
É possível notar que a principal diferença nas fontes geradoras de receita recorrente entre os clubes do relatório da Deloitte e os clubes brasileiros está na capacidade de geração de receita comercial. Enquanto esta é a linha de menor representatividade dentre os clubes da Série A aqui no Brasil, ela representa quase metade da receita gerada na média dos 30 clubes do relatório.
Por outro lado, nos clubes brasileiros, a comercialização dos direitos de transmissão e as premiações decorrentes das participações nas competições chegaram a representar 60% das receitas geradas na temporada 2023, segundo o Levantamento Financeiro dos Clubes Brasileiros elaborado pela EY. Enquanto nos Top 30 clubes da Money League, essa fonte representa em média 38%, o que denota uma dependência maior dos clubes brasileiros de boas negociações na venda dos direitos de transmissão e nos resultados dentro de campo para manter sua saúde financeira em dia.
O relatório da Deloitte também destaca que, mesmo entre os 30 principais clubes, há diferenças na composição das fontes geradoras de receita, de acordo com a posição no ranking. As receitas dos direitos de transmissão representam 34% do total para os 10 primeiros clubes da lista, enquanto para os clubes entre as posições de 11 a 20, chega a representar 47%. Isso demonstra que uma menor dependência dessa fonte, aliada ao crescimento da capacidade comercial, é uma marca dos clubes mais poderosos do mundo na atualidade, como Real Madrid, Manchester City e Manchester United.
Na ilustração abaixo, é possível observar graficamente a diferença entre as principais fontes geradoras de receita dos clubes do Top 30 de faturamento e os clubes brasileiros da Série A.
Quais fatores dificultam os clubes brasileiros de competirem na geração de receita?
Se por um lado, na América Latina como um todo e, especialmente no Brasil, temos diversos times que rivalizam diretamente no tamanho de suas torcidas com os grandes clubes listados no relatório da Deloitte, por outro lado, existem diversos fatores que explicam por que o Flamengo é uma rara exceção na lista de clubes que mais geram receita em todo o mundo. Vamos entender um pouco mais sobre eles.
1. Disparidade das moedas Euro x Real
Apesar da indústria do futebol estar cada vez mais baseada no euro como moeda, para o futebol brasileiro isso se reflete muito mais em sua estrutura de custos do que na geração de receitas recorrentes. A cada nova temporada e janela de transferências é possível notar tanto o custo de aquisição quanto os salários dos atletas ficando substancialmente mais caros. Grande parte dos times da Série A já conta com um número relevante de jogadores recebendo cifras consideradas competitivas no futebol europeu, além de uma quantidade cada vez maior de atletas brasileiros e estrangeiros reforçando nossa liga ainda no auge físico, vindos de ligas europeias.
Quando se trata da geração de receita recorrente, por outro lado, tudo é baseado em real. A maior fonte geradora, a venda dos direitos de transmissão, é comercializada majoritariamente com grupos de mídia brasileiros que visam a arrecadar posteriormente vendendo espaços publicitários para empresas que buscam se posicionar essencialmente no mercado local.
Da mesma forma, as outras fontes de receita também são baseadas quase que em sua totalidade no mercado local. A negociação dos clubes com seus patrocinadores pode até ser dolarizada em alguns casos, mas o cálculo que as marcas realizam é com base no retorno que essas ativações podem gerar com base em seu potencial no mercado local, considerando a moeda e o poder de compra do país. A lógica é a mesma para o potencial que os clubes exploram hoje de vender ingressos, programas de associação e produtos oficiais. Quase tudo depende do mercado local e isso é reflexo de uma dificuldade do futebol brasileiro de internacionalizar seus campeonatos e clubes.
2. Dificuldade de internacionalização do futebol brasileiro
Não há dúvida de que as principais ligas europeias tiveram muito sucesso em internacionalizar seus campeonatos e clubes em um projeto iniciado há algumas décadas para se tornar o centro do futebol mundial. Mas o que impede os clubes brasileiros de fazer o mesmo?
Existe uma relação de causa e consequência quase circular entre o poderio financeiro dos clubes e sua capacidade de internacionalização. Mas reduzir a falta de capacidade dos times do país somente a dinheiro é simplificar uma questão bem mais complexa que começa pela atratividade dos nossos campeonatos enquanto produto para exportação e passa inclusive pelas diferenças de fuso horário.
Como podemos esperar que o mercado europeu consuma o futebol brasileiro, se o horário nobre da principal competição disputada pelos nossos clubes, a Libertadores, é no meio da semana depois das 21h no horário local, ou seja, 1h da manhã ou mais dependendo do local na Europa? Além disso, para fãs de futebol na Europa poderem acompanhar os principais talentos do Brasil, basta esperá-los desembarcar nos clubes de lá logo que despontam para o futebol. Nossas principais atrações são vendidas muito antes de chegarem no auge físico e técnico.
A dificuldade de modelar um produto atrativo para exportação também é consequência de outra diferença fundamental entre o futebol brasileiro e europeu, que explicamos abaixo.
3. A falta de uma liga que realmente unifique os clubes e fortaleça um produto de exportação
Estamos vivendo um momento inédito do futebol brasileiro do ponto de vista das transmissões esportivas, reflexo da organização dos clubes em dois grandes blocos: Liga Forte União (LFU) e Liga do Futebol Brasileiro (Libra). Falei dos potenciais impactos disso em uma coluna no fim do ano passado, mas, apesar da criação das ligas, o calendário nacional do futebol brasileiro ainda é regido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e não sofre impacto nenhum com a organização dos clubes. O reflexo disso, até o momento, é um calendário inchado e complexo e que faz até com que os clubes escolham preservar seus atletas em determinados momentos do campeonato nacional para privilegiar as copas (nacionais ou internacionais).
Moldar um calendário que permita que os clubes sejam mais fortes e competitivos é um dos grandes fatores que poderia ajudar a transformar nosso futebol em um produto de exportação, mas não é o único. O mais importante de tudo na lógica dessa organização é a tomada de decisões pensando no crescimento conjunto. Clubes mais fortes fazem melhores campeonatos e isso atrai mais fãs (que consomem produtos desses clubes e os tornam ainda mais fortes, e por aí vai).
Até agora olhamos para o copo meio vazio pensando o que impede outros clubes brasileiros de estarem entre os 30 maiores geradores de receita do mundo. A presença do Flamengo, porém, pode ser um bom sinal para o futuro. Quais fatores podem indicar um futuro com mais clubes brasileiros nessa lista?
As oportunidades que os clubes brasileiros podem explorar
Existe um caminho que indica um futuro onde os clubes brasileiros podem reduzir a enorme distância que foi criada pelos europeus na capacidade de geração de receitas recorrentes. Muito desse caminho passa pelo ambiente digital e abaixo explico os motivos.
- O Brasil é um dos países mais conectados do mundo
É de conhecimento geral o fascínio que o brasileiro tem pelo mundo on-line. Segundo um relatório da Comscore, o país é o segundo maior consumidor de redes sociais do mundo em tempo gasto, atrás apenas da Índia, que tem uma população cinco vezes maior. Nossa população é praticamente onipresente na internet, não importa o assunto. No futebol não poderia ser diferente.
Toda essa audiência digital pode se transformar em um enorme ativo financeiro se bem aproveitada, conforme explorei em mais detalhes nessa coluna. Não à toa, boa parte dos clubes europeus da lista da Deloitte também tem procurado explorar isso ao criarem perfis em português para explorar sua base de fãs brasileira.
Alcance, engajamento, tempo de tela e interações valem muito dinheiro. E se os clubes ainda estão riscando a superfície desse potencial, tem muita gente que fatura alto com isso no país.
2. Também é um dos mercados mais maduros de criadores de conteúdo e publicidade digital
Casimiro e Gaules são dois criadores de conteúdo gigantes que estão ligados ao esporte de alguma forma. O primeiro realiza transmissões esportivas de eventos gigantes como Olimpíadas, Copa do Mundo e muito mais. O segundo é mais focado em e-Sports, porém cada vez mais próximo de outras modalidades, inclusive montando um time de futebol de 7 para competir na nova febre chamada King’s League. Esses dois são ótimos exemplos do tamanho que a cultura dos criadores de conteúdo tem no Brasil, mas criadores de alcance massivo como eles são só uma ínfima parte desses profissionais no país.
Segundo uma pesquisa da Nielsen, são mais de 10 milhões de criadores de conteúdo no país, e cerca de 500 mil têm ao menos 10 mil seguidores. O fato de existir tantos criadores de conteúdo no Brasil é um reflexo e também uma das causas de termos uma população tão engajada nas redes. Afinal, os chamados influenciadores digitais são responsáveis por 54% de todo o engajamento gerado, segundo a Comscore.
O que isso tem a ver com os clubes? Tudo. A capacidade de monetização existente na internet brasileira é gigante. Segundo um estudo da Influency.me no ano passado, 54% das marcas investiram em ações com criadores de conteúdo em 2023. Além disso, todos os estudos e pesquisas da área indicam que esse número só tende a crescer.
Os clubes, apesar de já conseguirem produzir bastante conteúdo com qualidade, ainda patinam na hora de monetizar seus canais digitais. Maximizar esse potencial é se aproveitar de uma característica do país para reduzir o abismo em relação às grandes potências europeias.
Uma forma de se fazer isso é se aliar aos próprios criadores de conteúdo para criar um hub como muitas organizações de e-Sports têm feito. Essas empresas, que já nasceram em um contexto digital, sabem que construir e fomentar comunidades está no centro de sua estratégia de negócios e têm muito a ensinar para clubes esportivos mais tradicionais.
3. Os clubes brasileiros estão se fortalecendo de forma independente, seja como Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), ou com associações bem estruturadas
Se existe uma grande distância dos clubes brasileiros para os europeus, ao menos na América do Sul o futebol nacional tem reinado absoluto nos últimos anos. Nas últimas seis finais da Copa Libertadores, dez finalistas eram clubes brasileiros e apenas dois argentinos. Isso é reflexo de um segundo abismo econômico que se formou entre os clubes nacionais e o restante dos países.
Na última década, estamos acompanhando um movimento intenso de profissionalização na gestão. A Lei das SAFs ajudou a acelerar as movimentações em alguns clubes, mas não é o único fator envolvido, já que clubes como Palmeiras e o próprio Flamengo, que figura na lista de clubes que mais faturaram na temporada passada em todo o mundo, seguem sendo clubes associativos.
Independentemente do modelo, o que importa é que esse fortalecimento financeiro dos clubes tem atraído novamente a presença de grandes jogadores brasileiros e estrangeiros. No ano passado, tivemos a chegada de Memphis Depay ao Corinthians, recentemente o retorno de Oscar para o São Paulo e, no final da semana passada, a confirmação da volta de Neymar ao Santos.
Ter grandes jogadores midiáticos, com uma trajetória extensa no futebol europeu e até o retorno do maior goleador da seleção nacional jogando no país não só aumenta o interesse pelo futebol no mercado local como pode ser uma fagulha para atrairmos também uma maior atenção de torcedores estrangeiros.
Se ainda é difícil para um torcedor em Madri assistir a Santos x Botafogo-SP começando às 23h15 de uma quarta-feira (não só pelo horário mas também pela limitada transmissão internacional dos campeonatos daqui) para ver Neymar em ação, é bem mais simples para o Santos compilar seus melhores momentos, bastidores e entrevistas em diversos conteúdos em espanhol para atrair e monetizar um novo público.
E isso é só o começo. Quantos formatos, modelos e produtos podem ser criados para explorar o que temos de melhor a oferecer do nosso futebol utilizando os meios digitais, tanto para o mercado local quanto para o mercado internacional? O que falta para os clubes construírem um ecossistema digital completo e integrado gerando monetização de forma direta e indireta com o fã?
Será que vamos ver mais times brasileiros nos próximos relatórios Deloitte Football Money League? Talvez o clube que sair na frente na estratégia desse ecossistema digital seja o próximo da lista.
Vitor Marini é profissional de marketing com mais de uma década de experiência liderando projetos de mídia digital e dados para grandes anunciantes do país, como Samsung e Ford, entre outros. Atualmente, é CEO da Retize, a primeira sports media network (rede de mídia esportiva, em tradução livre) do país, que ajuda clubes esportivos a transformarem as interações digitais dos fãs em receita no mercado publicitário