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Ação coletiva pode abalar relações trabalhistas e mercado que movimenta US$ 8,6 bilhões ao ano no futebol

Processo que tramita no Tribunal de Justiça da União Europeia é inspirado em uma sentença da corte favorável ao jogador francês Lassana Diarra

Lassana Diarra vestiu a camisa do Lokomotiv Moscou entre 2013 e 2014 - Reprodução

De todos os esportes existentes no mundo, o futebol certamente está entre os menos propensos a grandes mudanças.

Com uma estrutura de poder altamente verticalizada e centralizada, a modalidade costuma demorar décadas para incorporar transformações significativas em suas regras ou mesmo em sua dinâmica interna de funcionamento.

O ano de 2025 marca justamente as três décadas de uma sentença trabalhista que alterou para sempre a balança econômica no futebol mundial. E, agora, um novo processo ameaça abalar mais uma vez as estruturas do esporte mais popular do planeta.

A chamada “Lei Bosman”, na verdade uma sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferida em 1995, criou condições para que os clubes europeus pudessem contratar os melhores jogadores de todo o mundo, criando uma hegemonia sem precedentes dentro de campo e também nas finanças.

O que foi o “Caso Bosman”

Ao fim da temporada 1989/1990, o jogador belga Jean-Marc Bosman, então contratado pelo RFC Liège, recusou-se a aceitar a redução salarial de 60% imposta pelo clube e foi colocado na lista de jogadores transferíveis.

Bosman chegou a um acordo para ser contratado pelo Dunkerque, da França, mas o RFC Liège exigia uma indenização equivalente a € 600 mil para liberar o atleta. A transferência naufragou, e, assim, o jogador resolveu processar o Liège.

Em meio a idas e vindas, nas quais o meio-campista chegou a ser impedido de atuar por outros clubes, Bosman enfim venceu o processo, que teve como consequência a abolição das restrições relativas à utilização e à transferência, dentro da União Europeia, de atletas que possuem cidadania de algum dos países do bloco econômico.

O “Caso Lassana Diarra”

O novo caso em discussão no TJUE também tem a ver com multa contratual, clube belga e um jogador que foi impedido de atuar com base nos regulamentos da Federação Internacional de Futebol (Fifa).

Em novembro de 2024, a corte europeia deu ganho de causa ao francês Lassana Diarra, em uma ação movida pelo atleta na década passada contra a Real Associação Belga de Futebol (RABF), após ser impedido de atuar pelo Charleroi, por conta de uma disputa envolvendo o não pagamento de uma multa pela rescisão sem justa causa do contrato que ele possuía com o Lokomotiv Moscou, da Rússia.

O TJUE entendeu que a norma da Fifa sobre transferências de jogadores viola o princípio da livre circulação de trabalhadores no território da União Europeia.

O novo processo

Quando a sentença do “Caso Lassana Diarra” foi proferida, no fim do ano passado, ainda não estava claro o impacto que ela poderia acarretar no futebol europeu e mundial.

No início deste mês, porém, a Players’ Justice Foundation, entidade com sede na Holanda e que representa jogadores de futebol, resolveu ingressar com uma ação coletiva contra a Fifa no TJUE.

As leis holandesas permitem que qualquer cidadão que tenha trabalhado na União Europeia ou no Reino Unido possa ingressar com processos na corte continental.

A Players’ Justice Foundation vem sendo assessorada pelo advogado Jean-Louis Dupont, que representou Lassana Diarra na ação vitoriosa. A entidade espera reunir até 100 mil jogadores que atuaram na União Europeia de 2002 até agora e que teriam sido prejudicados pelas normas da Fifa.

Possíveis impactos econômicos

Antes da “Lei Bosman”, vigorava no futebol mundial um modelo de relação trabalhista similar ao “passe”, que foi extinto no Brasil com a Lei Pelé, de 1998.

O antigo formato criava um vínculo quase indissolúvel entre jogador e clube, que podia estabelecer valores arbitrários e muitas vezes impraticáveis para liberar o atleta para outro time.

O modelo atual garante remuneração à equipe nas transferências ocorridas dentro da vigência do contrato. Essas multas, de um modo geral, são (ou deveriam ser) proporcionais ao salário que o clube paga ao jogador.

Com o tempo, elas acabaram se convertendo em uma importante fonte de receitas para os times.

“O futebol é o único lugar do mundo em que os contratantes rezam para o contrato não ser cumprido até o fim. Se o jogador cumprir o contrato, o clube não lucra”, avaliou o advogado Higor Maffei Bellini, mestre em Direito Desportivo.

Por enquanto, a decisão judicial do TJUE envolvendo Lassana Diarra tem efeitos restritos ao universo europeu, portanto não é possível dizer se ela afetará de fato todo o mercado global de transferências.

Só em 2024, as trocas de atletas entre clubes movimentaram US$ 8,59 bilhões, segundo informações divulgadas pela própria Fifa, no Global Transfer Report.

Os números dizem respeito ao futebol masculino, universo marcado por transferências cada vez mais astronômicas, que são resultado de multas milionárias estabelecidas pelos clubes nos contratos com os jogadores.

Hoje, as transferências de atletas possuem um peso significativo nas finanças de algumas equipes, especialmente em países como o Brasil. No caso do Fluminense, por exemplo, a venda de jogadores respondeu, no ano passado, por 39% da receita bruta do clube, que foi de R$ 684,1 milhões.

Já para o Palmeiras, as transferências de atletas (o caso mais emblemático foi o de Endrick, negociado com o Real Madrid por € 72 milhões) representaram 42% do faturamento do clube em 2024, que foi de US$ 1,18 bilhão.

Dados do Relatório Convocados/Outfield, com patrocínio da Galapagos Capital, mostram que os principais clubes do país faturaram R$ 2,3 bilhões com venda de jogadores no ano passado.

Após a decisão do TJUE, a Fifa anunciou que não recorreria e reconheceu que seus regulamentos precisariam ser humanizados.

Resta saber a forma como essa “humanização” ocorrerá e qual será sua abrangência ao redor do mundo. Caso ela acarrete em uma redução geral nos valores das multas, mercados dependentes da venda de atletas, como o Brasil, serão impactados e precisarão rever suas fontes de receitas.

O que ocorreu com Lassana Diarra?

O atleta francês atuava pelo Lokomotiv Moscou e resolveu romper o contrato com o clube, sem justa causa.

A equipe russa apresentou uma queixa contra Diarra à Fifa. As atuais regras da entidade impõem sanções ao atleta que rompe contrato sem justa causa, entre elas o pagamento de multa. A punição é estendida ao clube que eventualmente vier a contratá-lo.

Além disso, estão previstas outras penas, como o jogador ser impedido de atuar profissionalmente por um período de 4 a 6 meses, ou o time ser proibido de registrar novos atletas por duas janelas de transferência.

O Charleroi, da Bélgica, até tentou contratar Diarra, mas a negociação não se concretizou, já que a equipe corria o risco de precisar arcar com a multa imposta ao meia francês.

Em 2015, a Fifa condenou o jogador a pagar indenização de € 10,5 milhões ao Lokomotiv. Foi então que Diarra decidiu processar a RABF e a entidade máxima do futebol mundial, alegando que as normas violariam o Tratado de Fundação da União Europeia.

A partir da decisão favorável ao atleta é que a Players’ Justice Foundation resolveu ingressar com a ação coletiva, que pode abalar o sistema de transferências de atletas no mundo.

Na visão do advogado Higor Maffei Bellini, o cenário atual ainda não aponta para um possível fim das multas nas trocas de jogadores, que movimentam somas bilionárias anualmente.

“Os pagamentos continuarão a ocorrer, até porque, no caso das grandes transferências, quem paga é o clube. Na minha visão, essa sentença representa uma vitória para os atletas, com o reconhecimento de que eles são trabalhadores, não escravos. Se a pessoa não pode escolher onde trabalhar, ela não é livre”, ressaltou.

Hoje, vale lembrar, as normas da Fifa referentes a contratos não impactam apenas as grandes transferências do futebol masculino que envolvem multas caras, mas afetam também espaços onde os recursos financeiros são limitados.

“As indenizações elevadas são exceção no nosso país e estão, na maior parte das vezes, restritas à Série A do Campeonato Brasileiro. Para mais de 90% dos atletas do futebol masculino e quase todas no futebol feminino, essa realidade não existe. Ainda assim, é comum no Brasil jogadoras serem impedidas de atuar, com base nas regras da Fifa, porque decidiram mudar de clube. Essa situação é desumana, sobretudo se pensarmos que a carreira de uma jogadora ou jogador é curta, e essa pessoa ficará durante meses sem receber salário”, concluiu Bellini.