Sábado de manhã, na piscina semiolímpica do clube, nadadores se surpreendem ao serem ultrapassados por uma sereia com um nado vigoroso e elegante. No mesmo dia, à tarde, corredores avistam lutadores medievais trocando golpes no gramado de um grande parque da cidade. O que poderia ser uma alucinação coletiva ou a visão de algum multiverso paralelo, na verdade reflete o aumento do interesse por esportes contemporâneos inspirados por práticas históricas e mitológicas.
Nadando como uma sereia
Segundo Milton Marinho, consultor de gestão de qualidade da Associação Profissional de Instrutores de Mergulho (Padi), a busca pelos cursos Mermaid (Sereia) Padi disparou nos últimos anos, representando o maior crescimento dentro dos cursos da associação. Os cursos envolvem desde a experiência de nado com cauda e monofin (Padi Discover Mermaid) até a formação avançada para prática em águas abertas (Padi Advanced Mermaid). Os praticantes são majoritariamente mulheres (90%) entre 20 e 39 anos, com maior representatividade na Ásia, EUA, Canadá e Austrália.
Para Milton Marinho, o crescimento da prática se deve às características únicas do programa, mesclando os benefícios para saúde (um exercício completo que envolve o corpo como um todo), com expressividade artística, aumento da conexão com a natureza e apelo ao mundo encantado das sereias, trazendo um espírito lúdico a uma prática esportiva artística.
De acordo com o consultor, a temática das sereias já vinha ganhando visibilidade nos últimos tempos, mas viu seu interesse crescer com o lançamento do live action “A Pequena Sereia” e a atuação de influenciadores digitais.

Em guarda
A luta de espada medieval é uma arte marcial praticada com técnicas de combate e espadas usadas na Idade Média. A prática faz uso de espadas e armaduras e tem seu grande momento em competições e exibições. Hoje, é possível encontrar clãs para prática da modalidade (swordplay) em diversos estados do Brasil, e esses clãs disponibilizam os equipamentos e instruções para os interessados iniciarem a prática de forma segura.
Segundo Logan, como é conhecido o coordenador administrativo do clã Wolfenrir, “muitos dos praticantes já vêm de alguma prática marcial, mas a maioria busca uma prática esportiva que encaixe diversão e atividade físicas, enquanto uma minoria vem por causa de séries com temática medieval ou anime”.
“Ressalto que o público que geralmente atraímos é de jovens dos eventos geeks, porque são mais abertos à experiência da prática. Muitos que praticam já conheciam o swordplay, mas tinham receio do preconceito que muitos têm com essa prática, que ainda é vista por muitos como brincadeira de criança”, acrescentou.
Logan ainda explicou que os praticantes são, em sua maioria, homens entre 17 e 40 anos, que buscam benefícios que vão além da saúde física, mas também desenvolvimento do pensamento estratégico e desenvolvimento de competências comportamentais em grupo e individuais.
Além da presença em campeonatos e feiras medievais, os praticantes podem se encontrar em bares temáticos, como o Casa Medieval, em São Paulo (SP).
Mas na perspectiva comportamental, por que isso está acontecendo?
Não são surpreendentes os dados que mostram que apenas quatro em cada dez adultos brasileiros praticam atividades físicas nos níveis recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os motivos para essa baixa adesão são variados: falta de tempo, cansaço, histórico de lesões etc. No entanto, estudos apontam outras razões menos óbvias, como a ausência de socialização entre os praticantes e a monotonia das atividades contribuindo significativamente para essa desmotivação.
É nesse contexto que surgem práticas como o combate medieval e o nado de sereia. Muito além da curiosidade ou do caráter performático, esses chamados “esportes fantásticos” representam formas autoescolhidas de movimentar o corpo. Permitir que o indivíduo escolha a intensidade e o tipo de atividade preserva seu senso de controle e reduz sentimentos de avaliação externa negativa, fatores-chave para promover a adesão ao exercício.
Mas, mais do que um exercício físico, essas práticas oferecem experiências imersivas e emocionalmente significativas. A Teoria da Autodeterminação, por exemplo, sustenta que atividades que envolvem escolha, criatividade e autenticidade fortalecem a sensação de autonomia. Justamente por isso, modalidades como essas permitem que o praticante explore dimensões subjetivas que raramente encontram espaço no cotidiano: fantasia, força, magia ou ancestralidade.
Por serem inspiradas em universos ficcionais, essas experiências proporcionam uma espécie de “fuga controlada” da realidade, ativando o sistema de recompensa cerebral por meio de estímulos sensoriais novos e prazerosos. Além disso, o sentimento de pertencimento a um grupo com interesses compartilhados fortalece vínculos sociais, sendo essa uma necessidade humana fundamental, especialmente em tempos de hiperconexão digital e solidão silenciosa.
Os dados da própria OMS mostram essa contradição moderna: enquanto seis em cada dez adultos não praticam atividades físicas, 25,9% dizem passar mais de três horas por dia em frente a telas no tempo livre. Atividades como o nado de sereia ou o combate medieval oferecem um contraponto a essa lógica, criando oportunidades para experimentar o chamado “Joy of Missing Out” (Jomo): a alegria de se desconectar e viver o presente com mais atenção e prazer.
Essas práticas se alinham a um movimento contemporâneo de valorização da subjetividade, da imaginação e do autoconhecimento, promovendo não apenas benefícios físicos, mas também psicológicos, como a redução do estresse, o fortalecimento da autoestima e a reconexão com o próprio corpo.
Conclusão
Talvez estejamos apenas arranhando a superfície de um novo paradigma do movimento, mais descontraído, em que corpo, imaginação e identidade se entrelaçam de forma livre e simbólica.
Se hoje já vemos sereias nadando em piscinas e cavaleiros duelando em parques, o que mais pode emergir desse território em expansão? Treinos de agilidade para therians (pessoas que se identificam de forma profunda com um animal, seja em um nível espiritual, psicológico ou simbólico)? Ou quem sabe ligas contemporâneas do jogo de bola mesoamericano?
Fica o convite: até onde a fantasia pode nos levar quando ela encontra um corpo disposto a se mover?
Alexandre Salvador é professor de Marketing e Vantagens Competitivas no curso de Administração da ESPM
Annaysa Salvador é professora de Comportamento do Consumidor no curso de Administração da ESPM
Conheça nossos colunistas