O futebol dos Estados Unidos (que, por lá, é chamado de “soccer”) está em vias de ter seu modelo de negócios totalmente sacudido, com a criação de uma nova competição de elite, que deverá competir (pelo menos em tese) com a toda-poderosa Major League Soccer (MLS).
A United Soccer Leagues (USL), que reúne a maioria das equipes profissionais do país, pretende lançar, em 2027, seu próprio campeonato de primeira divisão.
Para que a competição alcance esse status, será necessária a chancela da US Soccer, entidade filiada à Federação Internacional de Futebol (Fifa) e que dita as regras desse esporte nos Estados Unidos.
Não é de hoje que a USL planeja lançar sua divisão de elite. Mas o projeto sempre foi visto com certa reserva no mercado norte-americano, acostumado ao poderio da MLS, que possui as franquias mais famosas e valiosas (sediadas nas maiores e mais ricas cidades do país), os principais craques (incluindo Lionel Messi), os estádios mais modernos e exclusivos para o “soccer” (enquanto a USL ainda manda jogos em campos de futebol americano), além dos maiores acordos comerciais e de mídia.
Na última terça-feira (23), porém, a USL conseguiu um reforço de peso em seu projeto de criar uma liga de elite para concorrer com a MLS.
A organização esportiva recebeu um investimento feito pela BellTower Partners, empresa comandada por Kewsong Lee, ex-CEO do The Carlyle Group.
Os valores aportados pela companhia não foram divulgados. A única informação confirmada é que a BellTower será sócia minoritária da liga.
Lee irá se juntar ao Conselho de Administração da USL como vice-presidente, atuando ao lado do CEO Alec Papadakis e do presidente Rob Hoskins.
Polêmica do rebaixamento
A tentativa de criação de uma nova divisão de elite no futebol dos Estados Unidos tem como pano de fundo algumas questões relacionadas ao complexo modelo de organização que vigora no esporte do país.
No Brasil, que tem o futebol como o grande esporte de massas, estamos acostumados à existência do rebaixamento, que vigora nos principais campeonatos de boa parte dos territórios associados à Fifa.
Da década de 1970 em diante, a própria instituição máxima do futebol passou a recomendar às entidades “guarda-chuvas” que implantassem sistemas de acesso nas competições locais.
Foi assim, por exemplo, que a partir de 1980, o Brasileirão passou a contar com acesso e descenso, permitindo a times de divisões inferiores alcançarem a elite nacional, com base em seus métodos esportivos (embora a história demonstre que o modelo foi inúmeras vezes falho, mas isso não vem ao caso, por enquanto).
O rebaixamento, porém, não chega a ser uma norma no futebol e pode simplesmente não ser aplicado, nas competições originalmente constituídas como ligas fechadas.
Esse é o caso da MSL, que surgiu como uma contrapartida assumida pela US Soccer, no ano de 1988, em troca do direito de os Estados Unidos organizarem a Copa do Mundo de 1994.
Em 1993, a US Soccer escolheu a Major League Professional Soccer, antecessora da MLS, para promover o campeonato nacional de primeira divisão do país.
O formato adotado pela MLS foi inspirado nas principais ligas esportivas do país, como National Football League (NFL), Major League Baseball (MLB) e National Basketball Association (NBA).
Todas elas funcionam no modelo fechado, em que cada equipe (chamada de franquia) é sócia de liga, recebendo participações iguais sobre as receitas comerciais e de mídia geradas pela competição. Nelas, não existe rebaixamento nem acesso.
Para que novas equipes possam competir no campeonato, é necessária a aprovação dos proprietários das demais franquias. Além disso, os times que ingressam nas ligas precisam pagar uma taxa de expansão, que pode atingir a casa dos bilhões de dólares, nos casos de NFL ou NBA.
Hoje, a MLS conta com 30 franquias, espalhadas por grandes cidades dos Estados Unidos e Canadá, como Nova York, Los Angeles, Chicago, Miami, Houston, Vancouver e Toronto.
USL
A USL, por sua vez, embora seja mais antiga, nem sempre se dedicou ao futebol de campo. De 1986, ano de sua fundação, até 1990, ela tinha como foco principal o “indoor soccer”, disputado em quadras fechadas.
Àquela altura, porém, seus dirigentes se deram conta da revolução que a Copa do Mundo de 1994 provocaria no futebol dos Estados Unidos.
A ideia inicial era tornar a liga parte do sistema de níveis proposto pela US Soccer. Nesse modelo, que vigora até hoje, cada competição profissional existente é chancelada para uma divisão específica.
Atualmente, a MLS, que iniciou suas atividades em 1996, ocupa o topo da pirâmide, na divisão 1. Já a USL organiza os campeonatos de nível 2 e 3.
A forma como essa estrutura foi estabelecida é envolta em polêmica. Isto porque, quando a US Soccer decidiu “empinar” a criação da MLS, os Estados Unidos já contavam com um campeonato profissional de futebol, lançado em 1990.
Ele era promovido pela American Professional Soccer League (APSL) e foi a primeira competição de alcance nacional do futebol norte-americano, desde 1984, ano em que chegou ao fim a North American Soccer League (NASL), onde atuaram lendas como Pelé, Carlos Alberto Torres e Franz Beckenbauer.
Com a decisão da US Soccer de apoiar o lançamento de um campeonato nacional de futebol de primeira divisão, a APSL resolveu se candidatar, assim como a League One America e a própria MLS.
Das três concorrentes, a APSL era a única que já promovia uma competição, reunindo mais de 20 equipes de diferentes estados. Porém, ela foi preterida pela US Soccer e, em 1999, acabou se fundindo à USL, que passou a comandar as divisões inferiores do futebol dos Estados Unidos.
Três décadas depois, a organização agora lança uma nova investida para poder operar na elite do “soccer”.
Copa do Mundo
As grandes transformações no futebol dos Estados Unidos nunca ocorreram de forma gratuita. Na década de 1970, quando surgiu a primeira competição profissional do país, o esporte vivia um momento de expansão global.
Além disso, o vizinho México acabara de organizar uma Copa do Mundo, que teve como protagonistas vários dos jogadores que iriam brilhar na NASL.
Assim como a Copa do Mundo de 1994, realizada nos Estados Unidos, foi fundamental para o surgimento da MLS e para que a USL alcançasse sua configuração atual, o próximo Mundial, que terá o país como uma das sedes, também explica a movimentação que vem ocorrendo na terra do Tio Sam.
Não se pode esquecer que, neste ano, foi realizada nos Estados Unidos a Copa do Mundo de Clubes da Fifa, com a participação de times da MLS (que, por sinal, tiveram uma participação apagada no torneio).
De qualquer forma, o mercado do futebol vive um momento de alta no país, que hoje é um dos principais investidores nesse esporte, globalmente.
Grandes grupos norte-americanos têm adquirido propriedades de clubes em diferentes partes do mundo, como Itália (Milan), Inglaterra (Chelsea) ou mesmo Brasil (Botafogo).
Esse movimento não se restringe apenas aos times famosos e tradicionais, mas contempla até equipes antes pouco conhecidas como Wrexham (hoje avaliado em US$ 100 milhões) e Swansea City, ambos do País de Gales.
Por outro lado, mesmo organizando divisões inferiores nos Estados Unidos, a USL tem atraído a atenção de investidores, caso do ex-jogador Ronaldinho Gaúcho, que, no ano passado, tornou-se sócio minoritário do grupo proprietário do Greenville Triumph (masculino) e do Greenville Liberty (feminino).
Futebol feminino
No futebol feminino, a USL já conseguiu concretizar os planos de ter sua própria divisão de elite. Em 2022, a entidade relançou a W-League, que havia sido encerrada em 2015.
No ano passado, a competição foi rebatizada como Gainbridge Super League e obteve da US Soccer a chancela de primeira divisão, status que é dividido com a National Women’s Soccer League (NWSL), principal competição de futebol feminino do país e uma das mais fortes do mundo.
Esse movimento da USL, de retomar e tornar mais competitivo seu torneio de mulheres, ocorre numa época marcada pelo aumento no interesse pelo futebol feminino, tanto em termos de audiência quanto de investimentos.
Duas ligas podem conviver?
A possibilidade de criação de uma nova primeira divisão no futebol dos Estados Unidos pode parecer impensável para o público brasileiro, que está acostumado ao modelo centralizado do futebol.
Mesmo em países cujos campeonatos são promovidos por organizações independentes das federações, como Inglaterra, Alemanha, França, Itália e Espanha, prevalece sempre o modelo de liga única.
Nos Estados Unidos, porém, esse formato não se aplica. Por lá, é comum que, de tempos em tempos, surjam organizações dissidentes, atuando em uma mesma modalidade esportiva.
Aquilo que hoje chamamos de NBA, por exemplo, é resultado de uma história marcada por rivalidades e fusões, que resultou em uma das organizações esportivas mais bem-sucedidas do planeta.
Até a década de 1940, os Estados Unidos contaram com duas ligas relevantes de basquete. A maior e mais antiga delas era a American Basketball League (ABL), que tinha times sediados nas maiores cidades e elencos com maior diversidade étnica, embora seus proprietários não tivessem muitos recursos para investir.
A outra era a National Basketball League (NBL), cujas equipes estavam em centros urbanos menores, mas contavam com patrocínio de grandes indústrias instaladas nessas localidades.
Em 1946, proprietários de grandes arenas de hóquei do Canadá e do Nordeste e do Meio-Oeste dos Estados Unidos resolveram se unir para lançar sua própria liga de basquete profissional, a Basketball Association of America (BAA).
Pela primeira vez, uma liga desse esporte tinha à disposição investidores com dinheiro em caixa e grandes arenas localizadas nas principais cidades do país. O resultado disso é que, em 1949, a BAA fundiu-se à NBL, criando a NBA, ao passo que a ABL deixou de existir, em 1955.
Na década de 1930, a NFL também teve de lidar com a concorrência da Midwest Football League (MFL), que chegou a reunir oito equipes, em seu auge, antes de chegar ao fim, em 1940.
Nem sempre o maior prevalece
Um exemplo mais recente dessa confusão envolvendo diferentes organizações esportivas atuando numa mesma modalidade envolve a Fórmula Indy.
De 1956 até o fim dos anos 1970, as competições de automobilismo com veículos monopostos (de um só lugar) era promovidas pela United States Auto Club (Usac), que também organizava as 500 Milhas de Indianápolis, principal prova da temporada no país (o fundador da entidade, Tony Hulman, era dono do autódromo).
Em 1979, descontentes com a forma como a entidade geria o campeonato, proprietários de equipes decidiram se unir para criar uma organização independente, a Championship Auto Racing Team (Cart), que passou a promover sua competição de automobilismo.
Com o tempo, a Usac deixou de organizar seu campeonato, mas continuava à frente das 500 Milhas de Indianápolis, que acabou sendo incorporada ao calendário da Cart, tornando-se sua maior atração.
A competição foi crescendo, atraindo nomes que haviam brilhado na Fórmula 1, como o brasileiro Emerson Fittipaldi, com as equipes faturando mais e ampliando a tecnologia dos carros.
Até que, na década 1990, o ex-piloto Tony George, neto de Hulman, passou a desafiar a Cart, após se desligar do Conselho da organização.
Em 1994, ele fundou a Indy Racing League (IRL), uma liga independente, que seria focada em pistas ovais (o campeonato da Cart contava também com circuitos mistos e provas de rua) e reunia equipes menores e carros com menos recursos tecnológicos.
O argumento dele era resgatar a tradição dos monoblocos norte-americanos e evitar a predominância de equipes mais abastadas, fenômeno já observado na Fórmula 1.
Em 1996, a IRL enfim iniciou seu campeonato, provocando uma crise com a Cart, relacionada justamente às 500 Milhas de Indianápolis.
George, dono do autódromo, exigia que a prova daquele ano reservasse 25 vagas no grid para carros da IRL, restando apenas oito para pilotos da organização rival.
Como forma de retaliação, a Cart decidiu organizar US 500 em Michigan, no mesmo dia das 500 Milhas de Indianápolis. No fim das contas, porém, a nova prova não caiu no gosto do público e deixou de ser realizada, após a edição de 1999.
Nos primeiros anos de dissidência, a vantagem da Cart era ampla, em vários quesitos. Ela contava com quatro fabricantes de motores, quatro de chassis, dois fornecedores de pneus e 28 carros, além dos melhores pilotos (muitos deles estrangeiros), as equipes mais famosas e eventos que lotavam.
A IRL, por sua vez, tinha Indianápolis e o predomínio de pilotos locais. A partir de 2000, porém, o jogo começou a virar em favor do campeonato de Tony George, que conseguiu atrair de volta algumas equipes relevantes para as 500 Milhas, como a Chip Ganassi e depois a Penske.
Envolta em problemas de gestão, a Cart passou a perder ainda mais times e pilotos para a rival.
Pelos lados da IRL, embora o cenário não fosse dos melhores em termos financeiros, de mídia e de patrocínios, a operação enxuta permitia que a organização tivesse mais facilidade para lidar com os percalços. Além disso, ela passou a ser detentora da marca Indy.
Em 2003, a Cart acabou declarando falência. Os donos de equipes Gerald Forsythe, Kevin Kalkhoven e Paul Gentilozzi decidiram fundar a Open-Wheel Racing Series LLC (OWRS), para comprar os ativos e dar continuidade à categoria. Tony George também fez uma oferta (maior, inclusive), mas seu objetivo era eliminar de vez a concorrência com a IRL.
Unir forças
O juiz que analisou o caso chegou à conclusão de que, se George comprasse a massa falida, credores da Cart poderiam ficar sem receber. Assim, entregou os ativos para a OWRS, que alterou o nome da competição para Champ Car World Series.
Os dois campeonatos coexistiram até 2008, quando, em meio à perda crescente de patrocinadores e de receitas, as duas organizações decidiram se fundir, resultando na IndyCar.
O exemplo da Fórmula Indy demonstra que nem sempre o mais forte acaba prevalecendo no fim. Mas também comprova que a união pode ser o caminho mais seguro para que todos cresçam.
Hoje, a MLS ainda reina soberana no futebol masculino dos Estados Unidos. Mas o baixo desempenho das equipes do país na Copa do Mundo de Clubes da Fifa, disputada neste ano, colocou em xeque a competitividade da liga de primeira divisão.
Vale lembrar que, no começo de 2025, os proprietários da USL aprovaram em peso a mudança nas regras da entidade, de modo a instituírem o sistema de acesso e rebaixamento nas competições por ela promovida.
Se, por um lado, a mudança trará dor de cabeça aos donos das franquias das divisões superiores (que poderão ver seus times perdendo valor de mercado e sofrendo queda no faturamento, em caso de descenso), ela também pode atrair o interesse de investidores por equipes menores, que terão a chance de ascender no futebol do país, possibilidade que não existe na MLS.
A história do esporte dos Estados Unidos demonstra que duas ou mais ligas podem até conviver por um tempo. Porém, mais dia, menos dia, uma delas será engolida pela rival. Na disputa entre MSL e USL, resta saber a quem caberão os papéis de comensal e de refeição.