Confirmada na semana passada, a compra da norte-americana Electronic Arts (EA) pelo Fundo Público de Investimento (PIF, na sigla em inglês), da Arábia Saudita, em parceria com a Silver Lake, é um negócio que ultrapassa o universo dos games.
Na verdade, essa transação, avaliada em US$ 55 bilhões, é parte do projeto que busca modernizar e diversificar a economia do país asiático, ainda fortemente dependente da exportação de petróleo cru, recurso que, além de finito, está associado ao aumento na emissão de gases do efeito estufa.
Hoje, a matéria-prima responde por mais de 70% das receitas orçamentárias sauditas, cerca de 90% das exportações e aproximadamente 40% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, que foi de US$ 1,23 trilhão em 2024, de acordo com dados do Banco Mundial.
Alguns fatores precisam ser levados em conta, ao se analisar a compra da EA pelo PIF e pela Silver Lake. Alguns são de ordem estritamente financeira, ao passo que outros envolvem questões mais amplas, como construção do imaginário.
Pelo lado das finanças, o PIF e a Silver Lake colocam seu dinheiro em um investimento no qual o retorno é praticamente certo.
Conforme noticiou a Máquina do Esporte, o recente relatório “Global Games Market Report”, elaborado pela consultoria holandesa Newzoo, mostra um crescimento sólido no crescimento do setor de games.
Em 2024, o faturamento global desse segmento foi de US$ 182,5 bilhões. Para este ano, a previsão é de que os valores alcancem US$ 188,8 bilhões. O mesmo estudo projeta que em 2030 esse mercado gere US$ 206,5 bilhões em receitas, com um total de 3,9 bilhões de jogadores (em 2022, eram 3,15 bilhões).
Se o objetivo principal do PIF e da Silver Lake é obter retorno, o investimento se mostra mais do que promissor, porque envolve uma das principais empresas desse mercado e que tem em seu portfólio franquias de imensa projeção em todo o mundo, como Battlefield e EA FC.
Savvy Games
O objetivo do PIF não se resume a fazer o dinheiro render, mas sim em usar esse investimento para desenvolver novos setores da economia saudita.
Um deles é justamente o de games e e-Sports, que conta, inclusive, com uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento, lançada em 2022, e que busca estimular toda a cadeia produtiva desse segmento, desde fabricantes de consoles até desenvolvedores de jogos, provedores, equipes e competições.
Como parte dessa estratégia, em 2021, antes mesmo de esse documento ser lançado, o PIF bancou a criação do Savvy Games Group, que se tornou peça-chave para a expansão saudita no universo dos games.
Ainda naquele mesmo ano, o fundo soberano tornou-se acionista minoritário da própria EA e também das norte-americanas Take-Two Interactive e Activision Blizzard.
Em 2022, o PIF ingressou na japonesa Nintendo e no sueco Embracer Group, com investimentos na casa dos bilhões de dólares.
Um dos focos do governo saudita é impulsionar o desenvolvimento de jogos nos idiomas asiáticos, em especial o árabe, falado no país, que hoje não está no foco das grandes empresas ocidentais de games, embora seja falado por 387 milhões de pessoas no mundo.
O Savvy Games Group também tem procurado adquirir importantes empresas organizadoras de torneios de e-Sports, caso da alemã Electronic Sports League (ESL) e da britânica Faceit, que foram compradas em 2022 e tiveram suas operações combinadas em uma mesma companhia.
No ano seguinte, o Savvy Games Group tornou-se acionista majoritário da VSPO, com um investimento de US$ 275 milhões. A empresa promove torneios de e-Sports na China, segundo país mais populoso do mundo.
Copa do Mundo de e-Sports
A mesma natureza que presenteou a Arábia Saudita com uma das maiores reservas de petróleo do mundo também tornou extremamente desafiadoras as condições de vida no país.
Com um clima majoritariamente desértico, em que as temperaturas máximas durante o dia podem beirar os 50°C em meses como julho ou agosto, a nação tem dificuldade para desenvolver sua agropecuária, mesmo contando com espaço de sobra (possui o 13º maior território do planeta, com 2,2 milhões de quilômetros quadrados de área).
A situação impacta também a indústria, que, para se desenvolver, precisar importar matérias-primas essenciais, em setores como alimentação, bebidas e vestuário.
No caso da indústria de games, porém, o problema da matéria-prima é mais simples de ser superado, seja na fabricação de consoles físicos e acessórios (que, no fim das contas, utilizam basicamente produtos derivados do petróleo), seja no desenvolvimento de jogos, que dependem fundamentalmente da criatividade e do trabalho dos profissionais envolvidos (além, é claro, do acesso à estrutura necessária para desenvolver essa atividade).
A grande aposta da Arábia Saudita para dinamizar sua economia consiste em fomentar o turismo. O país, que já é um dos principais destinos religiosos do mundo (a Grande Mesquita de Meca, sozinha, recebeu 25 milhões de peregrinos durante o Ramadã deste ano), tem procurado explorar suas belezas naturais, como os recifes de corais do Mar Vermelho, a cratera de Al Wahbah, o Oásis de Al Ahsa ou as dunas do deserto de Rub’ al Khali, para atrair outros perfis de visitantes.
Os eventos esportivos também se inserem nessa estratégia. Hoje, um turista que viaja à Península Arábica terá a chance de assistir ao vivo partidas de futebol com as presenças de craques renomados como Cristiano Ronaldo e Karim Benzema, na Saudi Pro League.
O país também sedia competições de vela, golfe e tênis, corridas de Fórmula 1 e ainda organizará a Copa do Mundo de 2034.
Os eventos de games são relevantes dentro desse projeto, porque ajudam a atrair visitantes mais jovens, das Gerações Z e Alfa.
Em 2024, a Arábia Saudita passou a promover a Copa do Mundo de e-Sports, que, neste ano, distribuiu US$ 71 milhões em prêmios. A equipe saudita Team Falcons faturou, sozinha, US$ 7 milhões na edição de 2025 da competição. O time conquistou a maior pontuação geral do torneio por dois anos seguidos.
Poder simbólico
Com bilhões de usuários ao redor do planeta, os games têm um impacto que ultrapassa o universo das finanças. Eles participam também da construção do imaginário coletivo, seja pelos conteúdos que apresentam aos jogadores, seja por todo o aparato que os rodeia.
Dominar essa indústria é controlar, de certa forma, também, a produção simbólica no mundo. O fato de dezenas de milhões de turistas visitarem cidades como Paris, Nova York ou Veneza não se deve apenas às qualidades intrínsecas dessas localidades.
Antes de viajarem efetivamente, os turistas primeiro quiseram estar nesses lugares. Esse desejo de visitar foi construído a partir de um enorme aparato de comunicação, que inclui filmes, livros, séries de TV, desenhos animados e até mesmo jogos.
Com os crescentes investimentos em games, a Arábia Saudita terá um espaço privilegiado para promover suas paisagens icônicas e transformá-las em objeto de desejo de turistas de todo o mundo.
Sportswashing
Por outro lado, não se pode ignorar a questão do “sportswashing”, termo que pode ser traduzido como “lavagem esportiva” e que consiste em utilizar competições esportivas para melhorar a reputação de um regime político ou de uma nação.
Tratado como ditador por alguns órgãos de imprensa ocidentais, caso do jornal norte-americano The Washington Post, o príncipe Mohammed bin Salman teve a condição de posar, diante de plateias de todo o globo, durante a Copa do Mundo de e-Sports, como um líder jovem e afável, entusiasta da modernidade e incentivador de um passatempo que faz parte das vidas de centenas de milhões de adolescentes.
No fundo, as duas visões acabam tendo lá seu fundo de verdade: os games podem ajudar a turbinar a economia saudita e, de quebra, melhorar a imagem do país e aliviar a barra de seus governantes.