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Copa Libertadores: Hegemonia de clubes associativos nas semifinais de 2025 barra avanço da “Era das SAFs”

Passados cinco anos desde a instituição no país, modelo de gestão garantiu apenas um título na principal competição continental

Racing, LDU, Palmeiras e Flamengo disputarão as semifinais da Copa Libertadores 2025 - Reprodução / Instagram (@ldu_oficial; @racingclub; @palmeiras; e @flamengo)

A última final da Copa Libertadores, disputada em dezembro de 2024 entre Atlético-MG e Botafogo, que ficou com a taça, parecia ser o triunfo definitivo das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) na América do Sul.

Além de faturar o título inédito da competição continental, o Glorioso conquistou a Série A do Brasileirão, graças aos fortes investimentos feitos por seu proprietário, o empresário norte-americano John Textor.

Mas não foi dessa vez que a “Era das SAFs” chegou para ficar. Dos quatro times que se classificaram para as semifinais da Copa Libertadores 2025, todos funcionam no modelo associativo.

Dois deles, Flamengo e Palmeiras, mesmo estando estruturados no formato tradicional, conseguiram equilibrar suas finanças e montar times competitivos em todas as últimas temporadas.

Os dois clubes estão empatados no topo da classificação da Série A, com 61 pontos cada um, cinco a mais do que o Cruzeiro, que é uma SAF e tem um jogo a mais já disputado.

De acordo com o Relatório Convocados 2025, feito pela Outfield em parceria com a Galapagos Capital, Flamengo e Palmeiras foram os dois clubes que mais faturaram em 2024, com receitas de R$ 1,287 bilhão e R$ 1,128 bilhão, respectivamente.

Mas é no quesito endividamento que os dois clubes associativos brasileiros se destacam. Não é que ambos não possuam passivos. Ocorre que as contas de Palmeiras e Flamengo estão equacionadas e não há risco de eles não honrarem seus débitos.

Isso fica evidente na análise da relação entre a dívida líquida e as receitas totais, que, em 2024, ficou em 0,5 no Flamengo, enquanto no Palmeiras foi de 0,7 (índice que é considerado o limite máximo ideal de alavancagem), segundo dados do Relatório Convocados.

Enquanto isso, as duas SAFs que decidiram a Copa Libertadores 2024 possuem duas das maiores dívidas do futebol brasileiro.

O estudo mostra que a relação entre a dívida líquida e as receitas totais do Atlético-MG ficaram em 3,8, ao passo que no Botafogo ficou em 2,2 (o detalhe é que, à época em que o relatório foi elaborado, a SAF carioca não havia divulgado seu balanço relativo ao ano passado, que acabou mostrando uma situação pior que a projetada pelo Convocados, com base em informações do mercado).

Em 2025, o Galo sequer se classificou para a Copa Libertadores. Atualmente, o time mineiro disputa a semifinal da Copa Sul-Americana. O Botafogo já estava com a vaga garantida no principal torneio do continente, mas acabou caindo nas oitavas, diante da LDU (EQU).

A equipe de Quito e o Racing (ARG) tentam desbancar o favoritismo dos times brasileiros, que, de 2019 até agora, abocanharam todas as edições da Copa Libertadores.

Um detalhe que depõe contra as SAFs é que, desde que elas foram oficialmente instituídas no Brasil, em apenas uma ocasião, justamente em 2024, venceram o torneio. Nos demais anos, elas (ou suas similares das nações vizinhas) sequer chegaram à decisão.

Nem sempre SAF é garantia de hegemonia

Quando a ideia das SAFs começou a ser discutida em um Brasil marcado pelos discursos polarizados, logo se cristalizou a ideia, entre os defensores desse sistema, de que o modelo seria a salvação da lavoura para clubes endividados e que haviam perdido a competitividade.

Para o torcedor comum, predominava a noção de que bilionários individuais ou grandes fundos de investimentos chegariam com caminhões de dinheiro e disposição para montar superelencos multicampeões.

A praxis diária, porém, tem mostrado que a teoria é mais complexa do que aparenta. No ano em que o Botafogo ganhou Copa Libertadores e Série A do Brasileirão, por exemplo, a SAF registrou um prejuízo líquido de R$ 299 milhões, de acordo com o balanço de 2024, divulgado no último mês de agosto.

Em países onde modelos parecidos aos das SAFs já funcionam há mais tempo, ter investidores externos não é garantia de vantagem dentro de campo.

Na Espanha, a dupla Real Madrid e Barcelona funciona no modelo associativo e não dá quaisquer sinais de que pretenda mudar esse formato de gestão. Os dois figuram entre as instituições esportivas mais ricas do planeta.

O país europeu editou, em 1990, uma regra que obrigou todos os times da LaLiga e da LaLiga 2 a se tornarem Sociedades Anônimas Desportivas (SADs) para poderem continuar jogando. O Atlético de Madrid é um dos que aderiram ao modelo.

Além de Real Madrid e Barcelona, apenas Athletic Bilbao e Osasuna foram autorizados a seguir como clubes associativos, por razões históricas. Essa norma foi extinta em 2022. Em 35 anos de existência das SADs na Espanha, em apenas sete temporadas elas conseguiram ser campeãs da LaLiga. Nas 28 restantes, o troféu acabou nas mãos dos clubes associativos que seguem dominando o futebol do país.

LDU e Racing

Respectivos adversários de Flamengo e Palmeiras, Racing e LDU também estão estruturados no modelo associativo. O clube argentino, por sinal, merece um capítulo à parte, que será contado em outra reportagem.

O que vale destacar, por ora, é que, a exemplo da totalidade das equipes profissionais da Argentina, o Racing já se manifestou contra a adoção do formato SAD, que é defendido pelo presidente do país, Javier Milei. Trata-se de um caso de clube associativo convicto, e sua história dá certa razão a essa escolha.

A LDU, por sua vez, convive em um país onde já prosperam outros modelos de gestão, com a participação do capital de investidores externos.

Um exemplo é o Independiente del Valle, pertencente à Sociedad Farlay S.A, que tem como acionista majoritário o bilionário equatoriano Michel Deller, que atua no ramo imobiliário e é dono das redes de supermercados San Luis e Quicentro, duas das maiores do país, além de comandar as operações do KFC no Equador.

Atualmente, o Grupo Independiente comanda uma rede multiclubes internacional, que conta com representantes na Espanha (Deportivo Numancia de Soria) e na Colômbia (Atlético Huila).

A LDU segue no modelo associativo, mas nem por isso deixa de possuir laços poderosos no país. Sua lista de presidentes inclui nomes influentes do Equador, como Raúl Vaca Bastidas (que liderou o clube por 13 anos não consecutivos) e o banqueiro Rodrigo Paz, que chegou a ser prefeito de Quito.

Nesse modelo atual de gestão, a LDU, que surgiu como uma equipe amadora formada por estudantes da Universidade Central do Equador (até se profissionalizar em 1930), figura entre os cinco maiores campeões nacionais do país, com 13 títulos (o maior é o Barcelona, de Guayaquil, com 16), e tornou-se localmente conhecido como “Rei das Copas”, por haver conquistado competições como as Copas Libertadores (2008) e Sul-Americana (2009 e 2023).

Enquanto o Independiente del Valle segue por um caminho ligado a grandes grupos empresariais, a LDU optou por um caminho oposto, tendo aprovado, na semana passada, uma mudança no estatuto para implantar o projeto “Socios del Fútbol”, que permite aos torcedores contribuírem economicamente com o clube, podendo participar das eleições da diretoria que comanda a área futebolística.

Gestão

Na avaliação de Ary Rocco Júnior, professor de gestão esportiva na Escola de Educação Física e Esporte da USP (EEFE-USP) e ex-presidente da Associação Brasileira de Gestão Esportiva (Abragesp), o debate vai além da polarização entre SAF e clube associativo.

“Hoje em dia, da forma como o futebol está organizado ao redor do mundo, o grande diferencial está em uma boa gestão, com princípios de governança e a busca da eficiência e da eficácia esportiva, competitiva e financeira. Independentemente de ser uma SAF ou um clube associativo, aqueles que organizarem sua gestão e administrarem com princípios empresariais e com o entendimento de como é o futebol hoje em dia, vão se dar melhor”, disse o especialista.

O docente citou Flamengo e Palmeiras como exemplos de clubes associativos que se destacam pela boa gestão.

“A presidente Leila Pereira enxerga o Palmeiras como uma empresa, sem a emoção, sem aquele lado torcedor. Ela é uma gestora. O Flamengo fez a lição de casa lá atrás, com o presidente Eduardo Bandeira de Mello. Equacionou suas finanças, deixou de ser um clube endividado e que buscava dinheiro em banco, para ser uma equipe que gera receitas e, com um potencial de marca enorme, consegue ter condições financeiras de contratar atletas de renome, inclusive de nível internacional. Vantagem competitiva é uma boa gestão”, ponderou.