Na minha última coluna aqui, na Máquina do Esporte, procurei oferecer uma visão mais ampla – e pessoal – sobre como funciona o “recreational soccer” (ou “rec soccer”) aqui nos Estados Unidos.
Hoje, quero dar um passo adiante e mergulhar em outro universo: o do futebol juvenil competitivo, conhecido por muitos como “pay-to-play”, “travel soccer” ou “select academy model”.
Nesse cenário, o nível de exigência e qualidade sobe consideravelmente. As ligas são mais estruturadas, as equipes melhor organizadas, e o jogo, sem dúvida, mais intenso. Em contrapartida, também crescem as distâncias percorridas, as horas dedicadas e, claro, os custos envolvidos.
A realidade é que esse modelo exige um alto grau de comprometimento não apenas dos atletas, mas de toda a família, especialmente devido às viagens e torneios nos fins de semana. Além do investimento de tempo, há o impacto direto no orçamento doméstico.
Mas antes de entrar nos aspectos técnicos e de formação, vale colocar alguns números e dados em perspectiva.
O mercado do futebol juvenil competitivo envolve cerca de 3 milhões de jogadores entre 5 e 19 anos nos EUA. As mensalidades variam bastante conforme o estado, o clube e o nível de competição que o clube estiver inserido. Em uma liga de entrada, por exemplo, a mensalidade gira em torno de uma média entre US$ 200 e US$ 350 por jogador. O valor sobe exponencialmente em ligas mais competitivas.
Além disso, há os custos adicionais com uniformes, inscrições de torneios e viagens, itens que, somados, tornam o futebol competitivo um investimento considerável para muitas famílias.
Em termos de divisão de gênero, estima-se que os meninos representem cerca de 56% dos atletas, enquanto as meninas somam 44%, números que reforçam como o futebol feminino juvenil segue consolidado em participação e relevância no país.
No campo das marcas esportivas, o domínio é de gigantes como Nike, Adidas e Puma, que ocupam grande parte das equipes de base competitivas. Em alguns casos, as marcas fecham contratos diretos com clubes. Um bom exemplo é o da Nike com o Surf Nation, que vem se consolidando como uma das maiores redes de clubes juvenis dos EUA, somando aproximadamente de 25 a 30 mil jogadores com cerca de 50 clubes em diversas cidades de costa a costa.
Também é comum que essas marcas estejam presentes nos uniformes por meio de parceiros operacionais, como Soccer.com e Lloyds, que intermediam acordos, customizam os uniformes (escudo, patrocinadores, números) e fazem a entrega direta aos jogadores.
Vale ainda destacar a entrada de marcas locais nesse mercado, como a Capelli Sport (dos Estados Unidos) e a Charly (do México), pois se trata de um mercado com extrema conexão com a comunidade latina. Elas têm conquistado espaço ao oferecer parcerias mais próximas e adaptadas à realidade regional dos clubes.
Voltando ao aspecto técnico e formativo, o “pay-to-play” é também o sistema mais diretamente associado à formação de jogadores para o nível universitário e para as academias profissionais da Major League Soccer (MLS). É nele que muitos jovens constroem a base de suas carreiras e onde o equilíbrio entre excelência técnica, custos e oportunidades se torna um grande desafio.
Para aprofundar esse tema e trazer uma visão de dentro do campo, convidei para a coluna deste mês um amigo e grande profissional: Adriano Moraes*, diretor de futebol das categorias de 13 a 19 anos e treinador das equipes Sub-15 e Sub-16 do AFC Lightning, da MLS Next.
Conversei com ele sobre os bastidores, as conquistas e os desafios desse modelo de formação que movimenta milhões de jovens atletas nos Estados Unidos. Leia a entrevista abaixo:
Cristiano Benassi (CB): Como o programa competitivo da sua escola/clube trabalha o desenvolvimento técnico e tático dos jovens atletas? Há alguma metodologia própria ou inspiração internacional?
Adriano Moraes (AM): Nosso clube não possui uma metodologia própria, mas seguimos e aplicamos os princípios da metodologia de desenvolvimento de jogador (The U.S. Way), desenvolvida pela Federação Americana de Futebol (U.S. Soccer Federation). Essa metodologia oferece uma estrutura sólida e reconhecida dentro do território norte-americano para o desenvolvimento técnico e tático dos jovens atletas, com foco na formação integral do jogador, tanto dentro como fora de campo.
Por meio dessa abordagem, priorizamos o jogo como ferramenta principal de aprendizado, promovendo sessões de treino que estimulam a tomada de decisão, criatividade, entendimento tático e execução técnica sob pressão. Além disso, buscamos adaptar os conteúdos às diferentes faixas etárias e níveis de maturação, garantindo um processo de desenvolvimento progressivo e coerente com as diretrizes do futebol moderno.
CB: Como é o processo de acompanhamento do atleta fora de campo em aspectos como nutrição, psicologia esportiva e desempenho escolar?
AM: Atualmente, nosso clube não possui um programa estruturado de acompanhamento nutricional, psicológico ou acadêmico. No entanto, valorizamos muito o desenvolvimento integral do atleta e, por isso, mantemos uma comunicação constante e próxima entre os treinadores e os pais.
CB: Quais habilidades extraesportivas vocês procuram desenvolver nos jovens, além das técnicas, como trabalho em equipe, liderança e resiliência?
AM: O esporte, por natureza, já contribui significativamente para o desenvolvimento de habilidades extraesportivas como trabalho em equipe, liderança e resiliência. Entretanto, no nosso clube, damos ênfase especial a valores que consideramos fundamentais para a formação dos jovens atletas, como o respeito entre companheiros de equipe, treinadores, adversários e árbitros. Assim como a disciplina, especialmente no cumprimento de horários de treinos, jogos e compromissos com o grupo.
Acreditamos que esses princípios formam a base para o crescimento pessoal e esportivo dos nossos atletas, preparando-os não apenas para o futebol, mas também para os desafios da vida fora de campo.
CB: Na sua visão, qual é a principal diferença entre o “recreational soccer” e o “youth competitive soccer”?
AM: Na minha visão, a principal diferença entre o programa recreativo (“rec soccer”) e o programa competitivo (“youth competitive soccer”) está diretamente relacionada ao nível dos atletas e dos treinadores envolvidos em cada um.
No nosso clube, o programa competitivo conta com quatro níveis de equipes: nacional, regional, estadual e local, entre as categorias de Sub-13 a Sub-19. Essa estrutura nos permite identificar, direcionar e desenvolver os atletas de acordo com suas habilidades, comprometimento e objetivos esportivos.
Já o programa recreativo possui apenas o nível local, com foco maior na participação, diversão e aprendizado básico do jogo. Além disso, existe uma diferença significativa no perfil dos treinadores: enquanto o programa competitivo é conduzido por profissionais licenciados e com ampla experiência, o recreativo é formado em grande parte por treinadores voluntários, que têm um papel fundamental na introdução das crianças ao esporte.
CB: Como você enxerga o futuro do futebol juvenil nos EUA e o papel dos clubes competitivos nesse desenvolvimento?
AM: Tenho uma expectativa muito positiva em relação ao futuro do futebol de base nos Estados Unidos. Acredito que o país está em um momento de grande evolução e que, em breve, se tornará uma potência mundial, tanto no desenvolvimento de atletas quanto na consolidação do time nacional e das suas duas principais ligas, a Major League Soccer (MLS) e a United Soccer League (USL).
A U.S. Soccer Federation desempenha um papel fundamental nesse processo, oferecendo diretrizes, programas de formação e estrutura, que fortalecem todo o sistema de base, desde os clubes até os treinadores e atletas.
Os clubes competitivos, por sua vez, são essenciais para transformar essas diretrizes em prática diária, promovendo o crescimento técnico e tático dos jovens jogadores, além de contribuírem para a capacitação dos treinadores.
Conclusão
O futebol juvenil competitivo segue crescendo, movido por paixão, estrutura e, claro, muito investimento. E enquanto os meninos e meninas seguem sonhando com as ligas universitárias e profissionais, nós seguimos acompanhando, seja dos campos ou da arquibancada, esse fascinante laboratório do futuro do futebol norte-americano.
*Adriano Moraes é ex-atleta profissional de futebol, com passagens por vários times do interior paulista, como São José, Matonense e Inter de Limeira. Possui graduação em Educação Física pela Universidade do Vale do Paraíba (Univap) e mestrado em Psicologia Educacional pela Lincoln Memorial University.
O artigo acima reflete a opinião do colunista e não necessariamente a da Máquina do Esporte
Cristiano Benassi, executivo de marketing esportivo com mais de 20 anos de experiência em empresas como Nike, Samsung e Adidas, é atualmente diretor sênior de produtos de consumo da Federação de Futebol dos Estados Unidos (U.S. Soccer), responsável pela parceria da entidade com a Nike. Formado em Propaganda & Marketing, com MBA em Gestão de Marketing Esportivo, também já atuou na liderança de parcerias estratégicas com atletas, clubes, federações e grandes eventos como Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e Champions League
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