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A menos de dois anos da Copa do Mundo Feminina, futebol brasileiro ainda resiste ao protagonismo das mulheres

Declarações do técnico do Internacional, Ramón Díaz, escancararam mais uma vez o machismo estrutural que perdura no esporte mais popular do país

Ao lado das companheiras, Marta ergue o troféu da Copa América Feminina 2025 - Reprodução / Instagram (@selecaofemininadefutebol)

Dentro de um ano e sete meses, terá início a Copa do Mundo Feminina de 2027, que será realizada no Brasil. A escolha do país como sede da principal competição de seleções de mulheres promovida pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) foi comemorada por governos, entidades esportivas e patrocinadores.

Porém, no cotidiano do esporte mais popular do país, onde a realidade tende a ser mais crua do que nos discursos oficiais, a resistência ao protagonismo feminino ainda persiste, em pleno ano em que a seleção brasileira conquistou mais um título da Copa América da categoria.

De um modo geral, a situação tende a permanecer velada, sendo mascarada por narrativas institucionais do tipo “Aqui, nos importamos” e coisas do tipo. Mas, às vezes, o pensamento real de uma parcela dos atores desse universo acaba sendo escancarada, como na rodada do último fim de semana da Série A do Brasileirão Masculino.

Ao conceder entrevista coletiva após o empate em casa de seu time diante do Bahia, por 2 a 2, no sábado (8), o técnico do Internacional, Ramón Díaz, proferiu a seguinte frase: “O futebol é para homens. Não é para meninas, é para homens”.

Horas depois, o clube publicou uma nota, referindo-se à declaração do treinador como “infeliz” e relacionada a um lance específico do jogo (ele tentava culpar a arbitragem pelo resultado adverso). O Internacional também argumentou que Díaz reconheceu “que se expressou de forma inadequada e pede desculpas pelo ocorrido”.

De fato, naquele mesmo dia, foi publicada uma nota nas redes sociais do técnico, tratando do episódio.

“Reconheço que me equivoquei na construção do raciocínio e peço desculpas por isso. Precisamos evoluir sempre e que esse episódio sirva como aprendizado”, disse o texto.

O detalhe é que ele não quis se desculpar em vídeo.

“O Sport Club Internacional reafirma seu compromisso com o respeito e a valorização das mulheres em todas as esferas do esporte e da sociedade. Lugar de mulher é onde ela quiser”, prosseguiu o clube, que finalizou sua nota lembrando que o Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre (RS), será justamente uma das sedes da Copa Feminina.

Fatos como esse, envolvendo Ramón Díaz, são daqueles que os passadores de pano intitulam como “caso isolado”.

De maneira recorrente, no entanto, o Brasil vem convivendo com uma sucessão de “casos isolados”, que tentam barrar não só o protagonismo, mas a própria presença feminina no futebol.

Passado de perseguição

O Brasil é um país no qual grande parte da população julga entender profundamente de futebol. Uma pesquisa encomendada pela Bolavip e realizada pela empresa britânica RWB constatou que 57% dos homens com idades entre 25 e 34 anos acreditam que teriam condições de jogar a Série A do Brasileirão.

Se não jogam, é porque não tiveram chance.

Assim, nessa nação de craques frustrados, é recorrente ouvir críticas ao nível técnico do futebol feminino. Para além da subjetividade que esse tipo de afirmação carrega, convém observar que a análise desconsidera um fator histórico importante.

Como seria possível uma modalidade se desenvolver, se ela foi proibida no país por quase quatro décadas, justamente na fase em que esse esporte se profissionalizou e ganhou o mundo?

A prática do futebol pelas mulheres foi proibida em 1941, mediante o Decreto-Lei 3199, editado pelo então ditador Getulio Vargas, que considerava o esporte nocivo à saúde feminina. Apenas em 1979, quando o Brasil vivia o processo de abertura de outra ditadura, é que a regra foi revogada, pois não tinha qualquer base científica.

Mesmo depois da liberação, o futebol feminino brasileiro demorou décadas até contar com calendários e campeonatos minimamente organizados, tendo de enfrentar, muitas vezes, o descaso e a má vontade daqueles que dão as cartas no esporte.

Um exemplo nesse sentido pode ser observado no Atlético-MG, que montou times femininos em diferentes épocas, obtendo sucesso no cenário estadual. Em uma das experiências mais recentes, iniciada em 2005, o time conquistou, em um intervalo de seis anos, cinco títulos do Campeonato Mineiro.

Em 2012, porém, a diretoria optou por dar fim à equipe, ao mesmo tempo em que o clube direcionava todos os seus recursos para a participação do time masculino na Copa Libertadores de 2013, com um elenco que contava com estrelas como Ronaldinho Gaúcho e que acabou conquistando o título.

Apenas em 2019, após a publicação das novas regras da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), que passaram a obrigar os clubes a manter times femininos, caso quisessem participar das principais competições do país e do continente, é que o Galo resolveu retomar o projeto.

Mas o retorno do futebol feminino do Atlético-MG não se deu, inicialmente, com um time próprio, mas sim mediante uma parceria com a equipe amadora Prointer, que passou a usar o escudo e as cores do Galo nas competições.

Essas discussões sobre a obrigatoriedade do time feminino ressurgiu recentemente, por conta da boa campanha do Mirassol na Série A.

O clube do interior de São Paulo está em quarto lugar na classificação geral do campeonato, com 59 pontos, e deve se classificar para a fase de grupos da Copa Libertadores.

Inicialmente, chegaram a circular na mídia rumores de que o Mirassol poderia recorrer a uma parceria com outro clube para resolver a situação. Na semana passada, porém, o clube confirmou que criará uma equipe feminina própria.

Descaso

Em agosto deste ano, o Flamengo firmou um acordo com a Betano, naquele que é considerado o maior patrocínio máster da história do futebol brasileiro e que deve render ao clube R$ 268 milhões anuais.

A parceria contempla também a equipe feminina do Flamengo, que é o clube mais rico do Brasil, tendo faturado acima de R$ 1,1 bilhão em 2024. A diretoria anunciou que fará uma readequação orçamentária para a categoria.

No fim do último mês de outubro, a jornalista Renata Mendonça e as Dibradoras divulgaram um vídeo denunciando as condições precárias da estrutura oferecida às atletas do futebol feminino do clube.

Mesmo nas equipes que possuem um trabalho mais consistente no futebol feminino, o descaso também persiste.

Jogadoras do Corinthians, equipe mais vitoriosa do futebol feminino brasileiro e sul-americano na atualidade, enfrentaram atrasos de vários meses no pagamento das premiações relativas às conquistas do Paulistão e da Copa Libertadores de 2024.

A dívida com o elenco feminino só foi resolvida em meados deste ano, já na gestão do atual presidente Osmar Stabile. Ainda assim, seis atletas que deixaram o clube tiveram de acionar o Corinthians na Justiça, na esperança de receberem o prêmio.

Perdendo dinheiro

Cofundadora da Hoc Sports e colunista da Máquina do Esporte, Liana Bazanela foi diretora de marketing do Internacional entre 2021 e 2023.

Ela abordou as declarações machistas de Ramón Díaz em sua coluna publicada nesta quarta-feira (12).

Em entrevista à Máquina do Esporte, Liana avaliou que o problema está relacionado a diversos fatores.

“Em geral, as lideranças dos clubes são de uma geração na qual o futebol é percebido como algo masculino. Além disso, nas direções dos clubes quase não há mulheres”, afirmou.

Na visão da executiva, os patrocinadores podem ter um papel importante para transformar essa cultura machista, ajudando a valorizar o futebol feminino.

“As marcas precisam entender que o futebol feminino vai muito além de audiência. Ele envolve paixão e os sensos de comunidade e pertencimento”, ressaltou.

Na avaliação de Liana, clubes e marcas que ignoram ou criam barreiras à presença feminina no futebol estão, na verdade, perdendo dinheiro.

“Dos cerca de 150 mil sócios do Internacional, 25% são mulheres. São pessoas ativas no clube, que consomem. Estamos falando de dinheiro”, ponderou.

Enquanto o Brasil convive com discursos que tentam barrar a presença de mulheres no futebol, ao redor do mundo o esporte feminino atravessa um momento de forte expansão.

Isso fica evidente na valorização das franquias da Women’s National Basketball Association (WNBA). Em 2023, quando o Golden State Valkyries surgiu, seus proprietários pagaram US$ 50 milhões de taxa de expansão. Neste ano, o custo para se lançar uma equipe na liga saltou para US$ 250 milhões.

A Euro Feminina 2025, realizada na Suíça, estabeleceu recorde de público, com 657 mil torcedores presentes, superando a edição de 2022, ocorrida na Inglaterra, que atraiu 574.875 pessoas.

A decisão do torneio deste ano, vencida pela Inglaterra, registrou recorde de audiência no Reino Unido, com pico de 16,2 milhões de espectadores na soma das transmissões feitas por BBC e ITV.