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O novo papel dos atletas como comunicadores e os desafios de um fenômeno irreversível

Comunicação deixou de ser apenas um complemento e passou a compor o próprio valor econômico e simbólico dos atletas, que também se tornaram agentes inseridos em cadeias de negócio cada vez mais sofisticadas

Rebeca Andrade será embaixadora do Itaú Unibanco até o fim dos Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028 - Reprodução / Instagram (@itau)

Nos últimos anos, o papel desempenhado pelos atletas no ecossistema esportivo deixou de se limitar à performance e passou a incorporar dimensões que antes eram periféricas. Eles são, hoje, comunicadores, produtores de conteúdo, influenciadores digitais e gestores da própria imagem.

Trata-se de uma transformação estrutural e irreversível. Por isso, é altamente recomendado que entidades esportivas – clubes, confederações, comitês e parceiros – atentem-se a esse fenômeno, sob o risco de desperdiçarem ativos relevantes.

O alcance direto que os atletas e as atletas têm nas redes sociais redefiniu o modo como narrativas esportivas são construídas, uma vez que o próprio atleta passou a controlar a produção e a distribuição de conteúdo, desobrigando a intermediação jornalística ou institucional, que deixou de ser o único canal possível. Os Jogos de Paris 2024 confirmaram essa mudança: muitos atletas mobilizaram audiências maiores e mais responsivas do que veículos especializados.

A comunicação deixou de ser apenas um complemento e passou a compor o próprio valor econômico e simbólico do atleta. Isto é, a imagem do atleta não deriva automaticamente do contrato ou da relação esportiva; ela é um ativo próprio, com dinâmica jurídica e comercial autônoma. Portanto, há um potencial gigante em não combater, mas sim incentivar e participar da reverberação da voz dos atletas como crescentes influências.

Além de comunicadores, atletas tornaram-se agentes inseridos em cadeias de negócio cada vez mais sofisticadas. O uso intensivo de tecnologia, seja na performance, seja na produção de conteúdo, ampliou a exposição a riscos jurídicos que antes eram raros: contratos de publicidade mais robustos, acordos de licenciamento de imagem, direitos autorais sobre conteúdos digitais, proteção de dados pessoais, cláusulas de exclusividade e limites impostos por regulamentos esportivos. O atleta de hoje precisa de assessoria jurídica, comercial e contábil contínua para navegar nesse ambiente de forma segura, protegendo direitos centrais de personalidade, evitando conflitos de interesse e preservando o próprio potencial de monetização.

O mercado também passou a olhar para os atletas com lentes regulatórias. A recente regulamentação das apostas esportivas evidencia essa mudança. Partindo da premissa de que atletas frequentemente são alçados como centro de peças comerciais, a legislação produziu regras específicas para publicidade envolvendo atletas e reforçou mecanismos de integridade, transparência e prevenção de manipulação de resultados. Essa realidade demanda que atletas conheçam seus limites legais e que entidades esportivas ofereçam diretrizes claras e atualizadas, evitando riscos reputacionais e jurídicos.

Do lado dos parceiros comerciais, há um desafio adicional: o de flexibilizar processos internos. A rotina esportiva é volátil e não se ajusta facilmente a fluxos burocráticos rígidos. Marcas e entidades que desejam aproveitar o potencial comunicativo dos atletas precisam revisar rotinas de aprovação de conteúdo, cronogramas e exigências documentais. A relação com atletas, hoje, exige agilidade e compreensão de que a agenda competitiva deles e delas é um fator determinante na disponibilidade e nas entregas comerciais e comunicacionais.

100% bom?

Faz-se necessário refletir, claro, se essa mudança é de todo benéfica. A forte presença digital dos atletas afasta-os de sua função principal como trabalhadores do esporte? Os valores comunicados pelos atletas estão de acordo com suas respectivas entidades esportivas? Há possibilidade de regular um eventual descompasso sem incorrer em um tolhimento da liberdade de expressão? Os desafios são inúmeros, e a relação entre atleta-entidade-parceiro é cada vez mais complexa.

Contudo, a grande questão é que o sistema já mudou. A legislação começa a refletir essa transformação, o mercado global já absorveu essa dinâmica, e o público há muito migrou para modelos de consumo pulverizado e centrados em pessoas. Persistir em modelos antigos significa perder oportunidades óbvias de construção de marca, diálogo com novas audiências e fortalecimento do próprio ambiente esportivo.

Assim, reconhecer o atleta como protagonista multissetorial, ao mesmo tempo competidor, comunicador e agente econômico, não reduz o papel das entidades esportivas; ao contrário, amplia suas possibilidades. Parceiros que se organizarem para apoiar essa autonomia, oportunizando suporte jurídico adequado, processos compatíveis com a realidade esportiva e campanhas que dialoguem com a cultura digital, estarão melhor posicionados para gerar valor e se manter competitivos.

A pergunta que se impõe não é se instituições, parceiros e agentes públicos estão preparados para ela, mas se estão dispostos a rever estruturas históricas para acompanhar um dos principais ativos do ecossistema esportivo: os próprios atletas.

O artigo acima reflete a opinião do colunista e não necessariamente a da Máquina do Esporte

Alice Maria Augusto é advogada do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), atualmente faz pós-graduação em Direito Desportivo e Negócios do Esporte pelo Centro de Direito Internacional (Cedin)

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