Organizações esportivas são tradicionalmente fechadas, acostumadas a uma abordagem top-down, na qual os torcedores são relegados a uma função passiva, única e exclusivamente de consumo. É muito raro ver tais organizações se abrindo para ouvir aqueles que são sua principal razão de existir. Porém, é ponto pacífico que a competição pela atenção é cada vez maior e somente oferecer algo para consumir pode não ser mais o suficiente para fidelizar o fã, especialmente o das novas gerações. É preciso ir além e permitir que se faça parte, despertar um sentimento de dono. E a cocriação pode ter um papel fundamental nisto.
Ter este entendimento e, principalmente, colocá-lo em prática é um grande desafio. O normal é ter o controle da narrativa, tomar as decisões dentro de casa e apenas comunicá-las. Mas, se a palavra da moda é comunidade, essa mudança de pensamento torna-se vital para que exista de fato uma comunidade e não apenas um grupo de pessoas reunidas em um local. Há uma grande diferença. É sair da comunicação “one-to-many” em direção à “many-to-many”, na qual não só as pessoas interagem com a organização, participando ativamente de decisões, como interagem entre si, gerando valor.
Não estamos falando de algo novo, no entanto. Há bons exemplos no universo corporativo, sendo um dos mais bacanas o LEGO Ideas. Basicamente, ela é uma iniciativa da LEGO na qual qualquer pessoa pode se inscrever e submeter ideias de produtos que, caso sejam aprovadas pela comunidade, são desenvolvidas e colocadas no mercado, com o autor sendo remunerado por isso. No esporte também já houve ações interessantes. Uma delas eu tive a honra de ver de perto e participar: o Manto da Massa, do Atlético Mineiro. Designers enviam versões de camisas tendo um tema base; algumas são selecionadas por um comitê e entram em votação aberta, com a torcida elegendo a que será lançada em edição limitada. É um grande sucesso.
No campo de conteúdo, essa cocriação tem sido mais comum, até por conta de um fenômeno das redes sociais chamado UGC (User Generated Content), que é o conteúdo gerado pelo usuário. A G-League, a liga de desenvolvimento da NBA, por exemplo, chega a permitir que qualquer pessoa com canal na Twitch possa pegar o sinal oficial das partidas e transmitir para sua audiência. Recentemente, duas iniciativas me chamaram a atenção: a MLS fechou acordo com o TikTok para permitir que, entre outras coisas, fãs possam usar o conteúdo da liga para produzir seus próprios materiais na plataforma. Já o Atlético de Madrid lançou o Atleti Creators Club, um clube de criadores para impulsionar a marca em nível global. O programa é aberto para participação, basta preencher um formulário no site e se inscrever.
A web3 na cocriação
A web3, por sua vez, atua como um impulsionador deste movimento, justamente por conta de algumas de suas características: descentralização, composição e propriedade. Ao adotar tais princípios, organizações deixam de ser somente o centro das atividades para se tornarem mais facilitadoras da criação entre pessoas que compartilham de uma paixão. No caso do esporte, a paixão pela própria organização.
Particularmente, um dos projetos que estou mais empolgado de acompanhar é o .SWOOSH, da Nike. Trata-se de uma plataforma – já lançada, mas ainda em versão beta disponível apenas em alguns países – na qual pessoas poderão comprar, vender e, principalmente, cocriar com a marca objetos virtuais (ex: tênis e camisas) usados em videogames e outras experiências imersivas. E, o melhor, os membros da comunidade .SWOOSH que forem selecionados para tais cocriações terão participação financeira na venda desses produtos digitais. Estamos falando de uma das maiores e mais valiosas marcas do mundo, reconhecida justamente por sua capacidade de inovar em produtos, se abrindo para clientes/fãs. Uma frase no post de lançamento da iniciativa resume bem a essência do que estou falando: “A corrida para o futuro não tem um líder; é uma experiência compartilhada”.
Há ainda um movimento até mais radical na web3, que eu adoraria ver aplicado no esporte. É o CC0 ou Creative Commons Zero. Creative Commons nada mais são do que licenças sobre propriedades intelectuais; no caso do CC0, a propriedade intelectual é de domínio público. Ou seja, qualquer pessoa pode usar este IP, da maneira que quiser. A princípio, pode parecer algo contraintuitivo, afinal as organizações, inclusive no esporte, fazem dinheiro licenciando suas marcas para terceiros mediante pagamento, seja de mínimo garantido, royalties ou ambos. Porém o conceito prega que, ao liberar o IP, o mesmo será replicado de forma contínua, espalhando-se e tornando-se mais conhecido, o que, ao menos em teoria, só aumentaria o seu valor.
Claro que é necessário avaliar todos os riscos de uma atitude como esta, mas quanto mais poder se coloca nas mãos das pessoas, mais elas se sentem pertencentes ao que se está construindo. E é isso é muito impactante, ainda mais em um mundo de relações tão fluidas.
“Não importa quem você é, a maioria das pessoas mais inteligentes sempre trabalhará para outros”. Esta famosa frase de Bill Joy, co-fundador da Sun Microsystens, tinha como intenção destacar os benefícios de softwares de código aberto. Essa ideia de open-source já é bem disseminada no meio da computação, mas entre marcas de outros setores ainda há bastante resistência. Porém, imagine se você permitisse que o IP da sua organização não ficasse restrito apenas a você e a seus colaboradores, e pudesse ser trabalhado por milhares ou milhões de fãs; quantas oportunidades surgiriam, coisas que você nunca imaginou? É quase matemático: mais pessoas, mais cérebros, mais possibilidades.
Tenho refletido bastante sobre isso e acredito que seria um experimento muito válido de ser colocado em prática por um grande clube de futebol, por exemplo. Não estou falando de liberar de cara as propriedades intelectuais principais, como escudo e nome. Mas por que não criar uma marca oficial só com este fim, que possa ser explorada livremente por qualquer pessoa? A experiência com o Manto da Massa, no Galo, mostra o quanto isto pode ser positivo, haja visto que as camisas criadas pelo público chegam a ser mais bonitas (na minha opinião) do que as feitas pelas empresas de material esportivo. E estamos falando de uma iniciativa limitada. Pense isto em maior escala. Criatividade exponencial.
Felipe Ribbe é ex-diretor geral da Socios.com no Brasil e ex-chefe de inovação do Atlético-MG. Atualmente, é consultor em inovação no esporte, orientador de startups de Web3 e escreve mensalmente na Máquina do Esporte