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Branco no uniforme, cinza no entendimento

Por trás das normas rígidas de Wimbledon se busca preservar a identidade de um torneio que se tornou sinônimo de elegância, sobriedade e tradição

Wimnbledon mantém rígido código para vestimenta dos tenistas - Wimbledon / Divulgação

Wimnbledon mantém rígido código para vestimenta dos tenistas - Wimbledon / Divulgação

O tênis em Wimbledon é jogado em silêncio, mas ao redor da quadra, o que mais se ouve é debate. A regra que exige roupas brancas, imutável desde os anos 1960, voltou aos holofotes. E a pergunta que surge é sempre a mesma: por que não mudar?

A resposta mais honesta talvez seja: porque há mais em jogo do que parece.

Na edição atual do torneio, Jelena Ostapenko foi abordada por um árbitro após a partida. O motivo? A suspeita de que estaria usando um shorts colorido, algo que, até pouco tempo atrás, era proibido. Para rebater, ela levantou a saia e mostrou: estava tudo conforme a nova regra, ajustada em 2023.

A cena viralizou. Para muitos, mais um exemplo de como regras rígidas parecem ultrapassadas. Mas, por trás de normas como essa, existe uma lógica construída por décadas: preservar a identidade de um torneio que se tornou sinônimo de elegância, sobriedade e tradição.

Wimbledon leva isso ao extremo e não são só os atletas que seguem regras, os torcedores também precisam respeitar um código de vestimenta, evitar comemorar erros do adversário, tratar os árbitros com deferência absoluta, não usar paus de selfie e chegar pontualmente. Até a maneira como o torneio é chamado importa: o ideal é referir-se a ele como “The Championships”, e não simplesmente “Wimbledon”.

Parece exagero? Para quem está acostumado a arenas barulhentas e espontâneas, talvez, mas tudo isso ajuda a construir uma experiência que se diferencia de qualquer outro evento esportivo do mundo. É quase uma marca registrada, cuidadosamente protegida.

E é justamente aí que mora a tensão: atletas vivem o tempo da performance, da autoexpressão, da construção de marca pessoal, já as entidades vivem o tempo da preservação, da previsibilidade, da padronização. Quando um lado busca diferenciação e o outro, consistência, o conflito se torna quase inevitável.

Mas é importante dizer: entidades esportivas não são vilãs. Elas não existem para contrariar os atletas e sim para garantir que o espetáculo como um todo funcione. Têm responsabilidade sobre o legado, a reputação, a transmissão, os patrocinadores, os contratos e, em muitos casos, a sustentabilidade do próprio esporte. Seu papel não é agradar a todos, mas manter de pé um ecossistema que envolve interesses diversos e, muitas vezes, conflitantes.

Inovação x tradição

Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, por exemplo, o surfista John John Florence quis competir com a bandeira do Havaí no uniforme, sua identidade está profundamente ligada ao arquipélago, berço do surfe mas o COI negou. Atletas olímpicos representam países, não regiões. A frustração foi compreensível mas a decisão foi coerente com a lógica do movimento olímpico. O que, para o atleta, era um gesto legítimo, para a entidade era uma exceção que poderia abrir precedentes complicados.

Esse tipo de impasse se repete em outras modalidades. A NBA, por exemplo, nem sempre teve shows no intervalo. Durante muito tempo, as pausas eram apenas pausas. Quando surgiram as primeiras apresentações musicais e de entretenimento, não faltaram críticas: “vai tirar o foco dos jogadores”, “vai banalizar o jogo”. Hoje, essas atrações são parte essencial do espetáculo e um dos pilares que ajudaram a transformar a NBA em um produto global.

No vôlei, a mudança do sistema de vantagem para sets de 25 pontos corridos também gerou resistência. Muitos diziam que o esporte perderia sua imprevisibilidade. Mas a alteração tornou os jogos mais dinâmicos, com duração mais controlada e mais adaptados à lógica da televisão e do consumo digital. Ganhou o público, ganhou o patrocinador, ganhou o jogo.

Esses exemplos mostram que nem toda inovação foi, de cara, bem recebida. Assim como nem toda regra antiga é sinônimo de atraso. O desafio está em entender o que há por trás de cada decisão, porque nem todo rigor é resistência e nem toda inovação é revolução.

A força da tradição

Wimbledon, o COI, a NBA, a FIVB: todos operam em busca de equilíbrio entre tradição e transformação e esse equilíbrio não se encontra com radicalismo, mas com escuta. A tradição precisa aprender a se adaptar sem perder sua essência. E os atletas, muitas vezes, precisam compreender que, mesmo quando parece conservador, o sistema pode estar protegendo algo maior do que eles mesmos.

Em tempos de Kings League, Ballers e outras inovações pensadas para capturar uma nova geração de torcedores  mais veloz, mais conectada, menos paciente, é quase subversivo ver um torneio que insiste em não mudar, que não flexibiliza para agradar, que não altera suas cores, seu tom ou seu ritmo.

E talvez seja justamente isso que torne Wimbledon tão relevante.

Enquanto muitos tentam se destacar quebrando padrões, ela se destaca por preservá-los. E, no meio do barulho dos algoritmos, há algo de admirável e corajoso em continuar oferecendo silêncio, pontualidade e branco.

Ivan Martinho é presidente da World Surf League (WSL) na América Latina