Pular para o conteúdo

Entre cones, crianças e planilhas: O que é ser técnico de futebol nos EUA

Estimativa mais recente aponta que entre 14 e 15 milhões de crianças e adolescentes estão envolvidos com futebol de alguma forma no país

"Recreational soccer" tem custo acessível e prioriza o desenvolvimento básico, a diversão e a inclusão, sem focar em competições de alto nível - Divulgação / Charlotte Soccer Academy

Você já parou para pensar como o futebol amador é estruturado nos Estados Unidos? O país se tornou, hoje, uma verdadeira “Nação do Futebol”, e o esporte ganhou enorme popularidade, sendo um dos mais praticados entre crianças e adolescentes.

Dessa vez, quero mostrar um pouco da minha visão sobre esse universo, que estou tendo o privilégio de vivenciar de dentro, como treinador voluntário de uma equipe juvenil. Quero dividir com vocês tanto os números que mostram a grandiosidade do esporte por aqui quanto detalhes da minha experiência pessoal nessa nova jornada.

A estimativa mais recente aponta que entre 14 e 15 milhões de crianças e adolescentes estão envolvidos com futebol de alguma forma nos EUA. Segundo a Federação de Futebol dos Estados Unidos (U.S. Soccer), mais de 4,5 milhões de jovens entre 5 e 19 anos estão registrados em organizações filiadas. É um número impressionante, que reforça o que venho dizendo há algum tempo: trata-se de um mercado de futebol gigantesco, em expansão constante, com ainda muito potencial de desenvolvimento.

Hoje, o futebol amador no país se organiza principalmente em duas frentes: o “recreational soccer” e o modelo conhecido como “pay-to-play”. Além disso, existe o futebol praticado nas escolas de Ensino Fundamental II (Middle School) e Médio (High School), cuja estrutura varia de acordo com a região.

O “rec soccer” é a porta de entrada para a maioria das crianças. Tem custo acessível e prioriza o desenvolvimento básico, a diversão e a inclusão. Não foca em competições de alto nível, mas sim na formação, na participação e no prazer de jogar.

Já o modelo “pay-to-play” envolve clubes ou academias de rendimento, que selecionam atletas por meio de testes e cobram mensalidades mais altas de participação. Os times atuam em ligas competitivas e, muitas vezes, estão ligados a programas como o MLS Next, plataforma de desenvolvimento de talentos da Major League Soccer (MLS). O objetivo aqui é formar jogadores com potencial profissional, em um sistema que lembra as categorias de base do Brasil.

O futebol escolar, por sua vez, varia bastante. Em algumas regiões, as escolas contam com programas bem estruturados, treinadores qualificados e envolvimento ativo da comunidade, o que gera uma atmosfera única, parecida com o que vemos nos esportes tradicionais americanos.

Com o desejo de me conectar mais com o ecossistema do futebol local (e também com a sociedade e a cidade onde moro), decidi me voluntariar como treinador da escolinha recreativa da cidade.

E é justamente sobre essa experiência que quero falar. Escolhi começar pelo começo. Não fazia sentido, para mim, tentar ingressar direto no modelo mais competitivo. Acredito que o “rec soccer” é um dos pontos mais importantes do sistema, porque é ali que as crianças dão seus primeiros passos no futebol. A responsabilidade de quem está à frente é enorme: mais do que ensinar fundamentos, é preciso fazer com que os pequenos se apaixonem pelo jogo e queiram seguir praticando. Foi isso que me motivou ainda mais.

Depois de conversar com o time local, fui atrás dos requisitos legais para atuar como treinador. Pela plataforma da U.S. Soccer, realizei diversos cursos obrigatórios, especialmente sobre segurança no esporte, e passei por uma rigorosa verificação de antecedentes. Tirei também as licenças específicas para comandar equipes nos formatos 7×7 e 9×9 (que é onde se encaixa a categoria que treino: os 10U Boys).

Em paralelo, aproveitei o semestre anterior para acompanhar o máximo que pude de treinos e jogos de diferentes categorias, tanto masculinas quanto femininas, sempre ao lado de treinadores experientes. Queria entender a filosofia da escola, a metodologia, a abordagem com as crianças e a dinâmica dos treinos no dia a dia.

Antes de assumir oficialmente como treinador, participei de uma semana de capacitação intensiva, que teve inclusive uma prova escrita sobre o conteúdo estudado. Um detalhe que me impressionou foi a organização: cada faixa etária tem seu próprio manual de treinos (um “Training Guide” com exercícios adaptados à idade e ao nível técnico dos atletas). E existe até um “Vernacular Book” com as palavras e expressões recomendadas para nos comunicarmos com as crianças, tanto nos treinos quanto nos jogos. O cuidado com a formação técnica e humana é visível em cada etapa do processo.

Um outro aspecto muito interessante é que, a duas semanas do início da temporada, a escola organiza um “camp” de futebol aberto a todas as crianças, sejam elas alunas da escola ou não. Os treinadores participam ativamente, conduzindo os treinos e interagindo com os participantes, o que já serve como uma preparação valiosa para a temporada que está por vir. Não foi surpresa perceber que muitos dos jogadores do meu time participaram do “camp” que organizamos anteriormente.

Nessa altura, talvez você esteja pensando: “mas não é só futebol recreativo?”. É, sim. Mas, mesmo nesse nível, o compromisso com a qualidade é levado muito a sério. O fato de ser um sistema mais acessível financeiramente não serve como desculpa para não oferecer excelência no conteúdo e na experiência. E aqui, o foco está longe de ser “vencer a qualquer custo”. A missão dos treinadores é desenvolver as crianças dentro e fora de campo, e isso inclui promover a rotação entre posições para que todas tenham a chance de aprender e experimentar diferentes papéis no jogo.

Claro que deu trabalho para começar. Precisei investir tempo, energia, estudar, me adaptar. Abri mão de parte do meu tempo livre com a família para dar esse passo. Mas, quando se tem paixão pelo futebol, tudo isso se transforma em prazer.

Outro ponto importante foi o apoio do meu trabalho e das pessoas ao meu redor, especialmente da minha vice-presidente. Quando expliquei que, às segundas e quintas, eu precisaria sair um pouco mais cedo para os treinos, recebi apoio total. Estar em um ambiente em que o futebol é valorizado e as pessoas têm paixão pela modalidade faz toda a diferença.

Seguirei por aqui na rotina de treinos, dribles e aprendizados. E sempre tentando não perder o fôlego atrás dos pequenos craques.

Cristiano Benassi, executivo de marketing esportivo com mais de 20 anos de experiência em empresas como Nike, Samsung e Adidas, é atualmente diretor sênior de produtos de consumo da Federação de Futebol dos Estados Unidos (U.S. Soccer), responsável pela parceria da entidade com a Nike. Formado em Propaganda & Marketing, com MBA em Gestão de Marketing Esportivo, também já atuou na liderança de parcerias estratégicas com atletas, clubes, federações e grandes eventos como Copa do Mundo, Jogos Olímpicos e Champions League

Conheça nossos colunistas