Desde o encerramento da final da Copa do Mundo Feminina da Fifa, no último dia 20 de agosto, venho refletindo sobre a sequência de absurdos impetrados pelo presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, à atleta Jenni Hermoso, campeã junto da seleção espanhola naquela manhã (aqui no Brasil) de domingo.
Nos dias que sucederam a conquista, além de ter sido usurpado dela o direito de comemorar livremente um título do tamanho do mundo junto às suas companheiras, ainda tivemos que testemunhar múltiplas tentativas de calar a atleta, seja por meio de mentiras criadas e espalhadas “oficialmente” em seu nome, até intimidação e pressão exercidas sobre Jenni, suas colegas e seus familiares.
Pensei muito no que escrever para a coluna deste mês sobre esse tema, chegando à conclusão de que ninguém melhor do que a própria atleta para expressar o que pensa, sente e está decidida a fazer sobre o que houve.
Nos últimos dias, eu já havia compartilhado com alguns amigos a carta pública que a atleta divulgou em suas redes, trazendo seu posicionamento de forma firme, clara e corajosa. Publicadas originalmente em espanhol e inglês, as palavras de Jenni merecem ser conhecidas por todos.
Assim, a coluna desta terça-feira (29) cede lugar para que a voz dela possa chegar a ainda mais pessoas, trazendo seu texto original, na íntegra, agora traduzido para o português. Que Jenni Hermoso se faça ouvida e que todos nós, como sociedade, possamos aprender com esse episódio lastimável.
Eis a carta:
Depois de alcançar um dos sucessos mais desejados da minha carreira esportiva, e após alguns dias de reflexão, quero agradecer de todo o coração aos meus companheiros, torcedores, seguidores, à imprensa e a todos vocês que tornaram esse sonho realidade. Seu trabalho e apoio incondicional foram parte fundamental para a conquista da Copa do Mundo.
Infelizmente, a possibilidade de comemorar isso foi interrompida prematuramente. Embora seja verdade que não quero interferir nos múltiplos processos legais em curso, sinto-me obrigada a informar que as palavras do Sr. Luis Rubiales, ao explicar o infeliz incidente, são categoricamente falsas e fazem parte da cultura manipuladora que ele próprio gerou.
Quero deixar claro que em nenhum momento ocorreu a conversa a que se refere o Sr. Luis Rubiales em suas declarações e, sobretudo, que seu beijo teria sido consensual. Quero reiterar, como fiz antes, que não gostei deste incidente.
A situação chocou-me dadas as comemorações que decorriam naquele momento e, com o passar do tempo e depois de aprofundar um pouco mais esses sentimentos iniciais, sinto a necessidade de denunciar este incidente porque acredito que nenhuma pessoa, em qualquer trabalho, ambiente esportivo ou social, deve ser vítima desses tipos de comportamentos não consensuais. Eu me senti vulnerável e vítima de um ato impulsivo, sexista e fora do lugar, sem qualquer consentimento da minha parte.
Colocando de forma simples, não fui respeitada.
Pediram-me para fazer uma declaração conjunta para aliviar a pressão sobre o presidente, mas, naquele momento, tudo que eu tinha em mente era aproveitar a histórica conquista alcançada com minhas companheiras. Por esta razão, sempre transmiti à RFEF e aos seus diversos interlocutores, bem como aos meios de comunicação social e pessoas em quem confio, que não faria quaisquer declarações individuais ou conjuntas sobre esta matéria, pois entendi que fazê-lo reduziria o destaque de um momento tão especial para minhas colegas e para mim.
Apesar da minha decisão, devo declarar que tenho estado sob contínua pressão para fazer uma declaração que possa justificar as ações do Sr. Luis Rubiales. Não só isso, mas de diferentes maneiras e através de pessoas diferentes, a RFEF pressionou o meu entorno (família, amigos, companheiras de equipe, etc.) para dar um testemunho que pouco ou nada tinha a ver com os meus sentimentos.
Não cabe a mim avaliar as práticas de comunicação e integridade, mas tenho certeza de que, como Campeãs Mundiais, nós, como equipe, não merecemos uma cultura tão manipuladora, hostil e controladora. Este tipo de incidentes soma-se a uma longa lista de situações que nossas jogadoras têm vindo a público denunciar nos últimos anos. Este incidente, no qual estive envolvida, é a gota d’água e o que todos puderam testemunhar ao vivo na televisão durante a celebração também vem acompanhado de atitudes como a que vimos esta manhã e que fazem parte do dia a dia da nossa equipe há anos.
Por todos estes motivos, quero reforçar a posição que assumi desde o início, considerando que não tenho que apoiar quem cometeu esta ação contra a minha vontade, sem me respeitar, num momento histórico para mim e para o esporte feminino, neste país. Em nenhuma circunstância pode ser considerada uma responsabilidade minha arcar com as consequências de divulgar publicamente algo em que não acredito, razão pela qual recusei as pressões recebidas.
Tenho TOLERÂNCIA ZERO para esses comportamentos.
Quero concluir deixando bem claro que, embora seja eu quem expresse estas palavras, foram as jogadoras da Espanha e de todo o mundo que me deram forças para fazer esta declaração. Perante tal demonstração de desrespeito e incapacidade de reconhecer os próprios erros e assumir responsabilidades, declaro aqui e agora a todos a minha decisão de não voltar a jogar pela Seleção Nacional, enquanto os atuais dirigentes permanecerem.
Obrigada a todos pelas mensagens de apoio e palavras de incentivo recebidas. Sei que não estou sozinha e, graças a todos vocês, avançaremos mais unidas do que nunca. Deixo esse assunto nas mãos da TMJ e da FUTPRO, e das pessoas em quem confio. Elas continuarão trabalhando nas próximas etapas necessárias.
#SeAcabó
Jenni Hermoso
Felipe Soalheiro é fundador da SportBiz Consulting e escreve mensalmente na Máquina do Esporte