Há pouco mais de um ano, o mundo celebrava os Jogos Olímpicos de Paris 2024, imortalizados na história como os da paridade de gênero. Pela primeira vez, o número de atletas homens e mulheres foi o mesmo, uma conquista simbólica que coroou décadas de luta por espaço. No Brasil, o brilho de atletas como Rebeca Andrade e Rayssa Leal dominou o noticiário e alimentou a esperança de que, finalmente, o esporte feminino no país viveria um novo tempo.
Agora, com a poeira assentada, a pergunta fundamental se impõe: o que restou do “Efeito Paris”? Aquele momento de visibilidade máxima foi um ponto de inflexão real? A análise do cenário atual, baseada em dados, revela um balanço claro: o esporte feminino brasileiro vive avanços comerciais e midiáticos sem precedentes, mas ainda enfrenta os mesmos desafios estruturais que limitam seu potencial na base.
O legado nos negócios e na mídia: Maturidade e consistência
O avanço mais tangível no pós-2024 ocorreu na esfera corporativa. O argumento de que o esporte feminino é um mercado consolidado ganhou força global quando a Copa do Mundo Feminina de 2023, segundo a Fifa, gerou mais de US$ 570 milhões em receita, provando sua autossustentabilidade. Essa percepção amadureceu no Brasil, onde o investimento deixou de ser visto como causa para se tornar estratégia.
A prova mais clara é o crescimento do valor da principal liga do país: a premiação do Brasileirão Feminino, que era de R$ 6 milhões em 2022, saltou para R$ 25 milhões em 2024, com projeções de crescimento contínuo para 2025. Esse salto só é possível pela confiança de patrocinadores como Banco Bmg e Guaraná Antarctica, que mantêm investimentos consistentes e estratégicos na modalidade.
Essa sustentabilidade também é diretamente alimentada pela consolidação na mídia. Os Jogos de Paris foram o ápice do interesse: segundo dados da TV Globo, a final do skate com Rayssa Leal, por exemplo, teve uma audiência 40% superior à final masculina de Tóquio 2020.
E o mais importante é que essa atenção começou a se normalizar. A final da Superliga Feminina de Vôlei 2024/2025, por exemplo, manteve uma média de 10 pontos de audiência em uma manhã de domingo na TV aberta, liderando o horário e provando ter um público cativo para além dos megaeventos.
O desafio estrutural: Da inspiração à prática
Contudo, se a realidade no topo da pirâmide é animadora, os dados da base revelam uma falha sistêmica. A inspiração gerada pelas medalhas esbarra em um muro de desigualdade. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de sedentarismo entre mulheres no Brasil é drasticamente maior, com o principal ponto de abandono da prática esportiva ocorrendo na adolescência, entre 13 e 17 anos.
A causa é, em grande parte, a falta de acesso e estrutura. O “Diagnóstico Nacional do Esporte”, a mais completa radiografia do setor, aponta que a maioria das escolas públicas brasileiras não possui infraestrutura adequada, como vestiários ou quadras cobertas. A oferta de modalidades para meninas é, historicamente, mais restrita, o que na prática significa que uma jovem inspirada por uma atleta olímpica muitas vezes não encontra um lugar seguro e acolhedor para começar.
Essa lacuna expõe a concentração de recursos no alto rendimento em detrimento da formação. Enquanto o programa Bolsa Atleta é essencial para a elite, a discussão sobre a necessidade de políticas públicas mais robustas para a iniciação esportiva feminina continua sendo um ponto crítico no debate nacional.
Conclusão: Um legado em construção
Avaliar o legado de Paris 2024 um ano depois é constatar que a herança da igualdade não foi um prêmio, mas um catalisador. Os números de audiência, patrocínio e engajamento provam que o esporte feminino brasileiro se consolidou como um produto de altíssimo valor e relevância.
Contudo, a verdadeira concretização desse legado não será medida apenas pelos contratos assinados ou pelos picos de audiência. O desafio, agora, é usar essa força comercial e midiática para pressionar por mudanças estruturais.
O “Efeito Paris” gerou um capital de imagem sem precedentes. Transformá-lo em infraestrutura, oportunidade e políticas públicas que impeçam nossas meninas de abandonarem seus sonhos por falta de um ginásio ou de um time em sua cidade é a verdadeira medida de sucesso para o próximo ciclo olímpico.
A herança não é um presente. É uma construção. E os alicerces ainda são a parte mais urgente da obra.
Samanta Vicentini é especialista em Gestão de Relacionamento com o Cliente (CRM) e estratégias de relacionamento e fidelização de fãs. Com passagens nos programas de sócio-torcedor de Flamengo, Palmeiras e Vasco, acumula experiência no uso de dados para fortalecer o vínculo entre clubes e torcedores, gerando recordes de retenção e faturamento
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