Não se fala em outra coisa: a guerra entre Rússia e Ucrânia dá o tom dos noticiários em todo o mundo nas últimas semanas. No meio esportivo, não é diferente. A cada dia, surge pelo menos uma nova notícia relacionada ao tema, com impacto direto na organização de competições, nas atividades de seleções e clubes, e na prática do esporte pelos atletas. Consequentemente, são diversas as implicações no âmbito do direito desportivo, em especial em relação a contratos intimamente ligados ao setor.
Sob uma perspectiva comercial, o início da guerra levou ao rompimento de diversos contratos. O clube alemão Schalke rescindiu o contrato de patrocínio com a empresa russa Gazprom; a UEFA seguiu o mesmo caminho e também decidiu pelo encerramento antecipado de seu contrato com a mesma empresa; o Manchester United rompeu seu vínculo com a companhia aérea Aeroflot; e o Everton encerrou parcerias com três empresas russas.
Na Fórmula 1, a equipe americana Haas vinha desde o ano passado sendo amplamente financiada pela patrocinadora russa Uralkali, a ponto de assegurar um cockpit para o russo Nikita Mazepin (filho do dono da empresa) e ter o carro nas cores da bandeira russa. Na última semana, a equipe anunciou o rompimento do contrato com a empresa e a consequente saída do piloto da equipe.
Como era de se esperar, nenhum dos comunicados divulgados pelos clubes, pela UEFA e pela Haas divulgou precisamente a base contratual para a rescisão unilateral dos patrocínios. De modo geral, pode se extrair das informações de conhecimento público que nenhuma dessas entidades esportivas quis se manter direta ou indiretamente associada à Rússia em meio ao atual cenário de guerra.
Nesse sentido, ainda que o desconhecimento quanto ao teor de cada contrato não permita atestar categoricamente o cabimento da rescisão em cada caso, presume-se que esses instrumentos contratuais contivessem cláusulas específicas de saída em determinadas hipóteses. Exemplos seriam os casos em que a reputação da entidade esportiva fosse ameaçada pela parceria, ou mesmo previsão de rescisão por força maior. Ainda assim, essas hipóteses não escapam a uma controvérsia, afinal as empresas em si podem alegar não ter praticado quaisquer atos contrários às entidades esportivas. Enfim, a tomada de decisões nesse sentido pode ter envolvido a assunção de riscos de ordem jurídica pelas entidades esportivas (a depender da forma como foi construído cada contrato), em contraponto ao desejo de não se verem associadas à Rússia sob qualquer prisma.
As situações contratuais de solução complexa estendem-se aos atletas, sendo que aqueles que atuam na Ucrânia, em muitos casos, vêm passando por dramas até mesmo para deixar o país e fugir da situação de conflito. A guerra acaba por impedir que os jogadores de clubes da Ucrânia possam exercer suas atividades (não apenas treinamentos, mas também a disputa de partidas, tendo inclusive sido suspensa a liga ucraniana de futebol). Este cenário absolutamente indesejado repercute na execução do contrato de trabalho entre atleta e clube, e vem desafiando buscas por soluções que permitam que esses jogadores possam retomar suas atividades.
Nesse ponto, é preciso cautela na avaliação sobre os mecanismos jurídicos mais adequados para solucionar o impasse, levando-se em consideração diversos aspectos que influenciam na aplicação do direito. Uma dessas questões diz respeito à legislação aplicável ao contrato, isto é, além das normas da Lex Sportiva, o contrato se sujeita às leis de qual país? Por exemplo, a interpretação de uma cláusula de rescisão por força maior pode ser bastante diferente à luz do direito ucraniano ou do direito russo, se comparada ao direito brasileiro.
Não por acaso, a alternativa mais segura costuma ser a da negociação entre as partes contratantes. Nesse caso específico da Ucrânia, parece haver uma grande margem de interesse mútuo entre as partes (clube e jogador) em encontrar uma solução amigável para o problema. A liberação do atleta para empréstimo a um clube de outro país, por exemplo, pode ser uma saída interessante a ambos: o jogador pode voltar a atuar, enquanto o clube pode ficar dispensado de arcar com os custos de seu salário durante aquele período.
Ocorre que, em se tratando de transferências internacionais, é preciso ter em conta as janelas de transferência de cada país. O conceito de janela de transferência diz respeito ao período no qual os clubes de determinado país podem contratar atletas até então vinculados a clubes estrangeiros. Embora a janela brasileira, por exemplo, esteja aberta até 12 de abril (ou seja, os clubes brasileiros ainda têm mais de um mês para contratar jogadores vindos de outros países), de modo geral os países europeus que concentram as principais ligas do mundo se encontram fora do período de transferências internacionais. Não por acaso, notícias dão conta de uma tentativa de se criar exceções a esses períodos de transferência para atletas oriundos da Ucrânia. Mas enquanto essa condição excepcional não é tratada pela FIFA, vigoram essas restrições que limitam possíveis clubes interessados no empréstimo de atletas vinculados a clubes ucranianos.
Mudando de modalidade e retomando o caso do piloto Nikita Mazepin, a situação ganha contornos bem diferentes. O automobilismo é marcado por uma variedade maior de relações possíveis entre um atleta (o piloto) e uma entidade de prática desportiva (a equipe). Ainda que haja situações em que o piloto é efetivamente remunerado pela equipe para prestar seus serviços enquanto atleta, em outros tantos casos é o próprio piloto quem leva dinheiro à equipe.
Podem ser inúmeros os arranjos contratuais envolvidos nessa relação, mas o fato é que muitas vezes é um piloto que financia as atividades da equipe, e não o contrário. Em certa medida, a relação entre Mazepin, Uralkali e Haas ilustra bem esse modelo. A propósito, a escolha do substituto do piloto russo na equipe passa essencialmente por questões financeiras e pela possibilidade de injeção de recursos pelo piloto escolhido na Haas por meio de patrocínios, o que, inclusive, parece ser o principal obstáculo para que o cockpit seja assumido oficialmente pelo brasileiro Pietro Fittipaldi.
Por isso, a relação entre Mazepin e Haas desafia soluções distintas daquelas possivelmente aplicáveis à relação entre um jogador de futebol e o Shakhtar Donetsk. O caso do futebol é pautado por uma evidente relação de trabalho, altamente regulada não apenas pela legislação aplicável como pela própria FIFA. Já o caso do automobilismo revela grande influência de aspectos essencialmente comerciais, e a relação entre atleta e equipe não é fortemente regulada pela FIA. Isso não significa que não houvesse uma relação de trabalho entre Mazepin e Haas – tudo depende do teor do(s) contrato(s) existente(s) entre as partes envolvidas e da forma como a relação se desenvolvia na prática –, mas o fato é que, diferentemente do que ocorre no futebol, não se pode tomar isso como premissa.
Enfim, poucos dias após o início da guerra, já se pode notar seus efeitos sobre relações contratuais previamente estabelecidas e que de alguma forma estejam relacionadas a partes russas e/ou ucranianas. Os exemplos acima destacados do futebol e da Fórmula 1 são apenas uma pequena parte desses efeitos. Ainda que a análise aqui realizada seja superficial por não conter os detalhes específicos de cada contrato (o mais profundo exame de aspectos contratuais depende necessariamente do acesso a cada contrato específico), resta clara a complexidade da aplicação do direito em circunstâncias excepcionais como essas, as quais ansiamos que possam cessar o quanto antes, com o restabelecimento da paz entre Rússia e Ucrânia.
Pedro Henrique Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve bimestralmente na Máquina do Esporte