Os 100 anos do dia que mudou o futebol brasileiro passaram quase despercebidos

Lyncon, Philipe Gabriel e Lucas Eduardo, da base do Vasco, posam com uniforme dos Camisas Negras - Daniel Ramalho / Vasco

Quase na surdina, no último sábado (12), aconteceu o marco de 100 anos de um momento histórico no futebol brasileiro: a conquista do Campeonato Carioca de 1923 pelo Vasco. Para outras torcidas, parece banal falar de um título estadual tão longínquo. O Flamengo já ganhou 37 vezes essa taça. O Fluminense, atual bicampeão do Rio de Janeiro, comemorou 33 títulos. O Botafogo, 21. O próprio Vasco já empilhou outros 23 troféus do Carioca.

Mas 1923 é especial pelo fato de ter sido a primeira vez na história que uma equipe formada por negros, mestiços e pobres conquistou o título sobre os clubes de elite da zona sul do Rio de Janeiro (Fluminense, Botafogo e Flamengo) ou, o máximo de concessão na época, dos endinheirados da Tijuca, na zona norte (América).

Para conquistar o título, o Vasco fez uma campanha impecável: foram 12 vitórias, 1 empate e 1 derrota. O único revés veio no que seria chamado no futuro de Clássico dos Milhões, contra o Flamengo. A derrota por 3 a 2 teve arbitragem polêmica de Carlito Rocha, futuro presidente do Botafogo, que anulou um gol do ponta-direita Paschoal, o qual seria o do empate.

Todos contra um

Nas arquibancadas, houve a união entre torcedores de Flamengo, Fluminense e Botafogo contra aquele time formado por operários e imigrantes portugueses da zona norte.

A partida teria tido até uma precursora briga de torcida. Remadores de Flamengo e Vasco usaram seus instrumentos de trabalho para agredir torcedores adversários nas arquibancadas, fazendo o duelo ficar conhecido como “Jogo das Pás de Remos”. Mas é difícil separar o que é lenda do que é realidade, já que nenhum jornal da época registrou esse episódio, contado por Mário Filho no clássico “O negro no futebol brasileiro”.

Vasco e Flamengo já eram rivais, antes dos gramados, nas regatas da Baía de Guanabara. Curiosamente, ambos carregam até hoje em seus nomes a referência ao remo, e nenhuma ao futebol.

A união dos times grandes, então ligados às classes mais ricas, de pouco serviu. Contra o Fluminense, o Vasco conseguiu duas vitórias: 1 a 0 e 2 a 1. O Botafogo, lanterna daquele campeonato, foi derrotado por 3 a 1 e 3 a 2. O próprio Flamengo, equipe que tirou a invencibilidade do Vasco, já havia colhido um revés em casa, no primeiro turno do Carioca, por 3 a 1.

E, em 12 de agosto, o time formado por negros, mestiços e operários bateu o São Cristóvão por 3 a 2 e conquistou o título com uma rodada de antecedência. Os chamados Camisas Negras, apelido do time por causa da cor do uniforme, ainda sem a faixa branca, estavam eternizados.

Legado

O Vasco não foi o primeiro clube brasileiro a escalar negros. Há casos anteriores no Bangu (Fernando Carregal) e na Ponte Preta (Miguel do Carmo), por exemplo. No entanto, foi o primeiro time do país a conseguir um título de destaque usando craques pretos e dando visibilidade a eles.

A tal ponto de, no ano seguinte, os times grandes do Rio de Janeiro fundarem a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amea), vetando a inclusão em seu torneio de jogadores sem profissão definida ou analfabetos, o que atingia diretamente a maioria do elenco vascaíno. Foi aí que o clube enviou a “Resposta Histórica”, em que não abria mão de seus jogadores para atuar no campeonato da Amea.

O Vasco jogou, então, o torneio da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), contra times mais modestos, conquistando o título sem grandes dificuldades. Mas seu empenho e firmeza de caráter foi um passo importante para que jogadores negros e mestiços pudessem ter a chance de brilhar nos gramados brasileiros e internacionais.

Uma legião de gigantes seguiram os passos dos anônimos vascaínos de 1923, como Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Barbosa, Zizinho, Didi, Garrincha, Pelé, Jairzinho, Paulo Cezar Caju, Júnior, Serginho, Júlio César, Cafu, Romário, Dida, Ronaldo, Neymar, Vinícius Júnior e tantos outros.

Para o futebol, 12 de agosto poderia ser comemorado como uma espécie de 13 de maio: momento de redenção e em que um clube ainda humilde deu uma resposta contundente, em campo, contra o racismo, mal que ainda não superamos por aqui e no exterior. Essa história não pertence apenas ao Vasco, mas a todos os torcedores do Brasil.

Lembro de um amigo vascaíno certa vez me dizer, entre amargura e saudosismo, após mais um rebaixamento: “Não há história mais linda no futebol brasileiro”. De fato, não há.

Adalberto Leister Filho é diretor de conteúdo da Máquina do Esporte

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