Racismo estrutural é, sim, questão de Estado

Lionel Messi, capitão da Argentina, ergue o troféu de campeão da Copa América 2024 - Reprodução / Instagram (@afaseleccion)

Quando um torcedor imita um macaco para insultar um atleta negro durante um jogo da LaLiga ou a torcida brasileira, em um duelo da Libertadores, está tendo uma atitude individual.

Muitas vezes a atitude é condenada por alguns e minimizada por outras tantas pessoas, que preferem explicar a ação como algo que faz parte da sociedade, que se resume à liberdade de expressão ou que é apenas uma brincadeira de estádio, sem maiores consequências na vida social.

Esse tipo de reação, muito comum quando Vini Jr. denunciou tantos casos de racismo em jogos do Campeonato Espanhol, mostra que o preconceito está enraizado naquela sociedade.

É o que o professor Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos, chama de racismo estrutural. Ou seja, “é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”.

Se ele está presente, combatê-lo de forma veemente, como fez Vini Jr. durante todos os jogos da LaLiga em que sofreu insultos racistas, foge a essa normalidade. Por que ninguém nunca fez nada? Porque sempre foi assim, oras!

Como diz Silvio Almeida, dessa forma, o “racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade”.

Superação

Como superá-lo? Não há uma fórmula pronta para isso. Mas algumas pistas deixadas pela experiência. Reação enérgica para combatê-lo é uma delas.

As ações de Vini Jr. a cada insulto racial que sofria obrigaram a direção da LaLiga, para o bem de sua imagem e, consequentemente, até para seu próprio negócio, a tomar providências que foram além das campanhas anódinas de publicar posts em rede social e divulgar mensagens ineficazes em placas de led ou bandeirinhas de escanteio.

Os espanhóis, que louvam ídolos negros de clubes de alcance global, como Real Madrid e Barcelona, dos quais boa parte são brasileiros, são os mesmos que tratam com desprezo imigrantes africanos e seus descendentes. E vibraram, durante a Euro 2024, com os feitos de Lamine Yamal, filho de mãe guineense e pai marroquino, e Nico Williams, de pais ganeses. Os filhos de africanos foram fundamentais para a conquista do quarto título europeu da Espanha.

Ao apontar que o racismo estava entranhado na sociedade espanhola, Vini Jr. levantou discussões que foram muito além das quatro linhas do campo. O brasileiro conseguiu o feito de existir punição penal a atos racistas pela primeira vez. Uma evolução e tanto!

O atacante do Real Madrid, apesar de ter sofrido críticas da mídia, dirigentes e até de seus pares, também ganhou apoios importantes, tornou-se ícone dessa luta e fez o problema repercutir em uma sociedade onde o racismo é essencialmente estrutural, porque integra sua normalidade. Consequentemente, está reproduzido e entranhado nas instituições políticas. Ou seja, o racismo estrutural gera o racismo institucional.

Vini Jr. se ajoelha em manifestação contra o racismo em jogo do Brasil – Reprodução / Instagram (@vinijr)

Hermanos

Assisti a uma dessas repercussões em um programa esportivo da Argentina, no qual um jornalista repudiava o racismo contra Vini Jr. e reconhecia que esse era um problema que atingia não só a Espanha. De fato, casos de racismo acontecem diariamente na Argentina, no Brasil e em outros países, com graus diferentes de repercussão e baixa efetividade nas punições.

Um dos últimos, por ter sido transmitido durante as comemorações da Argentina pelo bicampeonato da Copa América, ganhou repercussão internacional.

Durante live do volante Enzo Fernández com o elenco da seleção argentina, que festejava o título, foi possível ouvir atletas entoando cânticos que menosprezavam a seleção francesa, rival derrotada na final da Copa do Mundo do Catar 2022. A letra dizia que seus jogadores seriam angolanos, teriam relacionamento com travestis, com mãe nigeriana e pai cambojano, e, mesmo assim, seriam considerados franceses.

O cântico racista, xenófobo e homofóbico, provavelmente comum em estádios locais, não surpreende em um país em que, há poucos anos, o principal jornal esportivo publicava uma capa chamando jogadores da seleção brasileira de macacos, como se fosse mera provocação de torcedor.

Ação e reação

Nem todos pensam assim. O subsecretário de Esporte, Julio Garro, cargo equivalente no Brasil ao de ministro do Esporte, cobrou publicamente um pedido de desculpas da seleção local. O político citou o capitão da equipe, Lionel Messi, e o presidente da Federação Argentina de Futebol (AFA), Claudio Tapia, como os porta-vozes para isso.

Pela audácia, Garro perdeu o cargo.

“A presidência informa que nenhum governo pode dizer o que comentar, o que pensar ou o que fazer à seleção argentina, campeã mundial e bicampeã americana, ou a qualquer outro cidadão. Por isso, Julio Garro deixa de ser subsecretário de Esportes da nação”, informou o governo de Javier Milei, em sua conta no X (antigo Twitter).

Quando a liberdade de expressão é utilizada pelo Estado para justificar crimes, temos uma coletividade com valores profundamente deturpados. Mas não surpreende. O racismo institucional apenas reproduz o racismo estrutural da sociedade argentina. Há um longo caminho para superá-lo por lá (e por aqui também).

Adalberto Leister Filho é diretor de conteúdo da Máquina do Esporte, autor de livros na área de esporte e professor, tendo ministrado cursos em programas de pós-graduação em Jornalismo Esportivo, Gestão e Marketing Esportivo, e Gestão de TV em universidades como Faap, Anhembi Morumbi, FMU, Ipog e Cásper Líbero

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