Na semana passada, a Apple apresentou oficialmente o VisionPro, seu aguardado dispositivo de realidade mista (XR). O lançamento conseguiu tirar o foco da inteligência artificial (IA) e trazer à tona duas tecnologias que, até então, andavam em baixa: as realidades aumentada (AR) e virtual (VR).
Propagadas há bastante tempo como potenciais mercados enormes, a verdade é que ambas ainda não conseguiram chegar ao mainstream. A VR segue praticamente limitada a alguns games e transmissões esportivas, enquanto a AR até tem aplicações bastante populares (o Pokémon Go, por exemplo, foi um sucesso estrondoso, e os filtros de redes sociais são usados por bilhões de pessoas), mas, convenhamos, nada disso é revolucionário.
A chegada da Apple, no entanto, pode ser um fator determinante para mudar essa história. Estamos falando da empresa mais valiosa do mundo, não só com recursos humanos e financeiros basicamente infinitos, como com um histórico de desenvolvimento de hardwares que moldaram comportamentos na sociedade, como iPod, iPhone e Apple Watch. Por que, então, o VisionPro não pode ser o próximo?
Claro, existe um longo caminho para se chegar lá. Primeiro, é preciso diminuir o preço. O dispositivo da Apple foi lançado por um valor de US$ 3.499 (R$ 17 mil, na cotação atual), proibitivo para a grande maioria das pessoas. O preço reflete o tanto de tecnologia que está embutida no produto, o que o faz entregar com uma qualidade ainda não encontrada em outros aparelhos já lançados (os reviews publicados por quem usou o VisionPro são bastante positivos). É óbvio que não será essa ordem de grandeza que massificará a realidade mista, mas historicamente inovações tecnológicas tendem a diminuir de custo conforme vão evoluindo e ganhando espaço. Foi noticiado, inclusive, que a Apple já está trabalhando em versões mais baratas.
O fator estético também deve ser considerado. Por mais que o design do VisionPro seja atrativo, ele não é feito para ser usado regularmente, nas ruas ou em outras situações sociais físicas. Isso sem contar a bateria, ligada ao aparelho via cabo. Há um entendimento nos players da indústria de que os dispositivos de XR devem ser os mais parecidos possíveis com óculos para serem aceitos socialmente e adotados em massa. Entretanto, ainda há muitas barreiras tecnológicas para se chegar lá, se é que algum dia chegaremos (eu, particularmente, sou um otimista).
O terceiro e último ponto que precisa ser superado é tão ou mais importante que os anteriores: ainda não existem aplicações realmente imprescindíveis disponíveis em aparelhos de XR, aquelas que “forçam” as pessoas a adotar um novo hardware. Sim, pessoas jogam games, fazem exercícios, meditação e trabalham em grupo usando esses dispositivos, mas, sejamos sinceros, tudo isso é o que chamamos no universo das startups de “nice to have” (“bom ter”) e não “must have”(“devo ter”). A aposta da Apple, no entanto, é colocar o VisionPro no mercado, com uma visão (perdoem o trocadilho) irresistível para atrair os desenvolvedores que construirão tais aplicações essenciais. Foi assim com o iPhone, foi assim com o Apple Watch. E deu bastante certo com ambos.
Mas você deve estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com esporte? Eu explico.
As possibilidades da realidade mista no esporte
No vídeo de lançamento do VisionPro, alguns segundos são dedicados a mostrar uma das experiências esportivas proporcionadas pelo aparelho: basicamente uma visão multitela das ações em campo/quadra, com estatísticas em tempo real, representações de atletas em tamanho natural por meio de realidade aumentada e até uma “reprodução” de melhores momentos (highlights) em uma mesa em frente ao sofá. Veja abaixo:
Essa visão já foi testada em outras ocasiões, por outros players, como a BT Sport com a MotoGP, em 2022.
Porém, podemos pensar bem além. Se considerarmos que, hoje, para usufruir de aplicações de AR, precisamos usar o smartphone como interface, a partir do momento em que as interações são sobrepostas diretamente no nosso campo de visão, abrem-se inúmeras possibilidades.
Vamos fazer um exercício de imaginação, levando em conta que os dispositivos se tornaram mais baratos e socialmente aceitos, que temos internet 5G ubíqua funcionando perfeitamente e que o mercado de aplicações relevantes se desenvolveu (avisei que era um exercício de imaginação).
Eu, sócio-torcedor do clube x, comprei ingresso para um jogo. Duas horas antes da partida, vesti minha camisa e meu óculos de XR, entrei no carro e dei um comando de voz. Destino: estádio. Ao invés de ficar olhando para o smartphone para ver o trajeto com menos trânsito, as informações sobre por onde ir vão aparecendo no meu próprio campo de visão. Ao longo do caminho, verifico se há vagas disponíveis no estacionamento e já pago antecipadamente. Quando chego no local, sou levado para a vaga adquirida.
Saio do carro e sou direcionado para o portão de entrada. Minha face é reconhecida e, quando a entrada no estádio é liberada, a mascote do time me recebe e fala: “Olá, Felipe! Seja bem-vindo! Você gostaria de ir até o seu assento ou quer fazer algo antes?”. Respondo que estou com fome e sou apresentado às opções, já com estimativa de distância e tempo de espera. Opto por um cachorro-quente e um refrigerante, faço o pagamento ali mesmo e sou encaminhado até o local. Antes, dou uma passada no banheiro, para evitar perder qualquer lance depois que o jogo começar. Pego meu cachorro-quente e meu refrigerante, e sou levado até meu assento, acompanhado pela mascote.
Ao olhar para o campo, vejo a escalação do time com a formação tática exposta no próprio gramado. Além disso, também opto por assistir a jogos anteriores do confronto, enquanto os times não entram em campo. Depois que a bola rola, consigo ver estatísticas em tempo real, a classificação atualizada, replays de diferentes ângulos e ainda lances de outras partidas que acontecem simultaneamente.
No intervalo, participo de ações gamificadas de patrocinadores e ganho benefícios que posso usar naquele momento, guardar para depois ou até comercializar com outras pessoas, caso eu queira.
Vem o segundo tempo, meu time vence e, enquanto ando até o estacionamento, vejo a entrevista com os jogadores e técnicos em formato volumétrico, como se estivessem ao meu lado. Antes de sair, assisto aos melhores momentos de ângulos imersivos dentro de campo. Aciono o comando de voz. Destino: casa. E sigo meu caminho de volta da mesma maneira, com um guia no meu campo de visão, não sem antes passar naquele fast-food que ofereceu uma promoção personalizada porque meu time ganhou e sabia que eu passaria por ali.
Essa é apenas uma das possibilidades proporcionadas por esse tipo de tecnologia imersiva. Você pode ler esse relato e não gostar, achar que não combina com a “cultura de estádio” no Brasil, que isso vai gentrificar ainda mais o futebol e tudo mais. Se você pensa assim, te digo duas coisas: a primeira é que as pessoas já fazem boa parte das coisas que narrei com um smartphone, e o óculos de XR apenas tornaria essa experiência muito melhor. A segunda é que sempre existirá a opção de não usar nada e curtir a ida ao estádio do jeito que você está acostumado. Há espaço para todos.
Felipe Ribbe é ex-diretor geral da Socios.com no Brasil e ex-chefe de inovação do Atlético-MG. Atualmente, é diretor global de comunidades DTC na AB-Inbev, orientador de startups de Web3 e escreve mensalmente na Máquina do Esporte