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Recalque não é tática, mas sim questão malresolvida

O que Emerson Leão e Oswaldo de Oliveira não entenderam sobre Carlo Ancelotti, e o que o futebol brasileiro ainda precisa aprender

Oswaldo de Oliveira no 2º Fórum Brasileiro dos Treinadores de Futebol, com Carlo Ancelotti e Emerson Leão ao fundo - Reprodução/YouTube/FBTF

Oswaldo de Oliveira no 2º Fórum Brasileiro dos Treinadores de Futebol, com Carlo Ancelotti e Emerson Leão ao fundo - Reprodução / YouTube (@falatreinador)

Há cerca de 10 dias, durante o 2º Fórum Brasileiro dos Treinadores de Futebol, evento promovido pela Federação Brasileira de Treinadores de Futebol (FBTF) e apoiado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), os ex‑técnicos Emerson Leão e Oswaldo de Oliveira manifestaram, ao lado de Carlo Ancelotti, visões críticas sobre técnicos estrangeiros no Brasil.

Leão chegou a dizer: “Eu sempre disse que não gostava de técnicos estrangeiros em meu país”, enquanto Oswaldo afirmou: “Se tivesse que haver, que fosse esse senhor [Ancelotti]. Depois que ele sair, a seleção deve voltar a ter um técnico brasileiro”.

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Essas falas têm fundo emocional e simbólico. No sentido psíquico, recalque: aquilo que foi reprimido, não resolvido, volta na forma de crítica ou bloqueio. Na construção civil, refere-se ao afundamento ou deslocamento do solo que sustenta uma estrutura, como um prédio ou ponte. Pode ser causado por excesso de peso, instabilidade do solo ou falhas no projeto de fundação. Já na linguagem popular, é usado para descrever uma atitude negativa de alguém que, por não alcançar algo, tenta desmerecer ou atacar quem conseguiu.

De todo modo, recalque também não deixa de ser um mecanismo de defesa. Mas quando ele vira ataque, atrasa o jogo, impede a evolução e contamina o vestiário.

Em ambas as definições há uma reflexão importante. O futebol brasileiro virou um campo minado de vaidades. Quem tenta atravessar com ideias novas, pisa em terreno perigoso, assim como na construção civil quando a base não é sólida. Mas Ancelotti veio com a leveza de quem sabe o que está fazendo, com mais títulos do que desculpas, com mais estudo do que queixa. E isso dói em quem parou no tempo.

Pior: isso escancara o despreparo de uma indústria que ainda trata conhecimento como ameaça. Preferimos manter reservas de mercado do que abrir o jogo para o intercâmbio de verdade. E isso vale para a CBF, para os clubes e para os centros de formação de técnicos.

Mas, acima de tudo, existe uma pergunta: por que ainda debatemos nacionalidade antes de competência, formação e intercâmbio?

Imagine se o mesmo critério fosse aplicado aos jogadores. Não teríamos Zico no Japão, Ronaldinho Gaúcho na Espanha ou Marta no mundo. O que nos engrandece como futebol é a troca. É o choque de culturas táticas. É o aprendizado vindo de fora. O problema não é o técnico estrangeiro. É o técnico que se recusa a aprender, sendo ele brasileiro ou não.

A grande lição que esse episódio nos deixa é que ainda confundimos proteção com progresso. Defender a exclusividade dos nossos profissionais não os torna melhores. O que faz isso é a capacitação, reciclagem e humildade para reconhecer que o jogo mudou. E que quem não estuda, como em qualquer área da vida, ficará de fora, fora de forma, mesmo que ainda esteja no banco de reservas.

O futebol brasileiro foi historicamente visto como berço do talento criativo, de dribles inventivos e de técnicos que também eram magos da bola. Tivemos, por exemplo, Vanderlei Luxemburgo comandando o Real Madrid, brasileiro que, por muito pouco, também não se tornou uma referência internacional, não fossem erros estratégicos de condução da carreira que ele mesmo confessa ter cometido à época.

Ao longo dos anos, porém, foi se construindo um ambiente em que muitos treinadores nacionais sentem que o mercado técnico lhes pertence (ou mereceria pertencer). Nesse cenário, a entrada mais expressiva de estrangeiros ou de ideias de fora, como portugueses, espanhóis e o tal italiano, gera tensão.

Vejamos dois exemplos recentes de estrangeiros bem-sucedidos no Brasil. Jorge Jesus, português, contratado em 2019, conquistou com o Flamengo a Copa Libertadores da América e tornou‑se o primeiro técnico estrangeiro a ganhar o Brasileirão no formato atual, obtendo 43 vitórias em 57 jogos em sua breve passagem pelo clube rubro-negro, com direito ainda às conquistas da Recopa Sul‑Americana e do Campeonato Carioca em 2020.

Abel Ferreira, também português, técnico do Palmeiras desde 2020, acumulou conquistas expressivas e a participação em 13 finais em cinco anos de clube. Foi eleito recentemente “o melhor treinador do século no futebol brasileiro” por uma votação de fãs no Diario As, da Espanha, com as conquistas de duas Libertadores, dois Campeonatos Brasileiros e uma Copa do Brasil, entre outros títulos.

Podemos comparar o futebol ao universo da tecnologia ou da indústria: se uma empresa decide atuar somente com engenheiros formados no mesmo estado, sem buscar “outsiders”, ela corre o risco de perder inovação. Da mesma forma, se um clube ou uma seleção decide por “reserva de mercado” apenas para técnicos nacionais, está se fechando à atualização, à troca, ao aprendizado externo.

Quando os ex‑técnicos reclamam do estrangeiro, talvez o que incomoda não seja tanto a nacionalidade, mas o espelho que esse fato confronta: “se ele foi bem, por que não fui eu?” Ou “se ele traz ideias novas, por que a nossa estrutura me impediu?”.

E cabe lembrar: o futebol global mudou. A formação técnica não é mais algo apenas local. O intercâmbio de metodologias, a análise de dados, o preparo físico, a gestão de comissão técnica, o marketing ligado à equipe: tudo exige atualização constante. Estudos mostram que a “home advantage” (vantagem de jogar em casa, em tradução livre) em campeonatos brasileiros pode ser confrontado pela eficácia de planejamento tático, independentemente, inclusive, da nacionalidade do técnico.

Mas há desafios: adaptação cultural, idioma, estilo de jogo brasileiro, calendário pesado. Todos precisam de apoio também, independentemente da nacionalidade. A troca não é automática. Portanto, o debate não pode partir da “proibição ou não” de um técnico estrangeiro no comando da seleção brasileira, mas de como maximizar o intercâmbio e garantir que o técnico, nacional ou não, tenha capacitação, estrutura e continuidade.

O episódio recente envolvendo os técnicos Emerson Leão e Oswaldo de Oliveira expôs mais que um incômodo: ele escancarou o medo do novo, a falta de preparo e a urgência de uma indústria que precisa parar de se proteger e começar a se capacitar ao invés de flertar com um recalque constrangedor.

Portanto, ao invés de argumentar com “não queremos esse ou aquele” ou “temos técnico brasileiro que vale mais”, uma postura mais madura seria: “Queremos técnicos bem formados, com processos, com intercâmbio, com autonomia”. A palavra “recalque” poderia ser substituída facilmente por “recálculo” na melhoria e no avanço da formação de técnicos no Brasil, passando por três pilares:

  1. Capacitação contínua: atualização em metodologia, tecnologia, psicologia e gestão;
  2. Intercâmbio internacional: convites a técnicos estrangeiros, parcerias com centros de excelência e estágios fora para quebrar o cerco;
  3. Abertura ao “mercado global”: não ter reserva de mercado significa que um técnico nacional disputa entre iguais, mas não por privilégio. Os clubes e a seleção devem escolher com base em competência, visão, resultado e processo.

Não há futuro no futebol brasileiro enquanto tratarmos o novo como ameaça e o velho como solução indiscutível, pois talento não tem nacionalidade, enquanto mediocridade e o chamado “recalque”, infelizmente, costumam ter endereço e registro inapagáveis da memória e das páginas da internet.

Como vivem dizendo por aí, há três coisas que não voltam: a flecha lançada, a palavra dita e a oportunidade perdida.

O artigo acima reflete a opinião do colunista e não necessariamente a da Máquina do Esporte

Reginaldo Diniz é cofundador e CEO do Grupo End to End

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