Sócio-torcedor 3.0

Atualmente, os benefícios dados aos sócios-torcedores ou são usados ou são perdidos - Reprodução / Twitter (@SaoPauloFC)

Programas de relacionamento são, sem dúvida, um dos principais casos de uso em que a Web3 pode tornar melhor o que é feito atualmente. O motivo é simples: em geral, estas iniciativas relegam aos participantes um papel totalmente passivo. A terceira geração da internet, que tem em sua essência colocar o poder nas mãos das pessoas, inverte esta dinâmica, abrindo inúmeras possibilidades de atuação ativa, inclusive em programas de sócio-torcedor. E é sobre isso que escrevo hoje.

Relembrando alguns fundamentos

NFTs, ou tokens não fungíveis, são basicamente certificados de propriedade sobre um ativo, seja ele 100% digital ou uma representação digital de um ativo físico. Como estes certificados são registrados em uma blockchain (rede pública e imutável), um NFT apresenta quatro características fundamentais:

– Identidade única: cada NFT tem um token ID único, que o diferencia dos demais. Mesmo que visualmente os tokens sejam iguais, seus registros na blockchain serão diferentes, como irmãos gêmeos idênticos, que possuem um CPF cada;

– Autenticado: ao ser registrado em uma rede pública e imutável, é possível verificar a origem de emissão do token e confirmar se o mesmo é original ou não;

– Rastreável: pelo mesmo motivo anterior, é possível rastrear todos os passos deste NFT, desde sua emissão até cada transação em que passa de carteira em carteira, de forma perpétua;

– Programável: é possível programar, no momento da emissão, o comportamento de um NFT dependendo das condições, usando o que se chama de smart contract, linhas de código que determinam esse comportamento. Por exemplo, ao emitir um token, é possível programar o pagamento automático de royalties ao criador a cada revenda que ocorrer.

Com estes conceitos reforçados, podemos voltar ao tema do artigo.

Problema no modelo atual

Atualmente, quando participo de um programa de sócio-torcedor, ganho benefícios de acordo com o plano que assino (dinheiro) e/ou meu nível de atividade dentro do programa (tempo). Tais benefícios são pontos, trocáveis por produtos (ingressos, camisas oficiais, etc.), experiências (visitas ao CT, encontros com jogadores, eventos especiais, etc.) e vantagens (descontos ou prioridade de compra em ingressos, desconto em loja oficial ou rede de parceiros, etc.), ou diretamente estes produtos, experiências e vantagens.

Entretanto, mesmo tendo conquistado estes benefícios, tenho apenas duas opções do que fazer: ou usá-los ou “morrer” com eles. Ou seja, se por qualquer motivo eu não quiser ou não puder usufruir do que ganhei, este direito adquirido me é tirado. E, se por acaso, eu não quiser mais fazer parte daquele sócio-torcedor, simplesmente perco tudo, mesmo tendo dedicado tempo e dinheiro ao programa. Não me parece justo, ainda mais em uma relação que envolve paixão.

Solução em um novo modelo de sócio-torcedor

Mas como seria um sócio-torcedor 3.0? Esta versão poderia tomar diversas formas, inclusive evoluindo ao longo do tempo e incorporando mais elementos, conforme clube e torcedores se tornem familiarizados com este novo conceito. Darei aqui a minha visão, atacando apenas o problema apontado acima.

Antes de mais nada, qualquer complexidade precisa ser retirada da experiência do usuário, como carteiras cripto de custódia própria e terminologia, por exemplo. Ao criar sua conta na plataforma do sócio-torcedor (web ou app), automaticamente uma carteira é aberta, vinculada aos dados pessoais do usuário. É nesta carteira que todos os seus ativos serão “guardados” e com ela que as transações serão autorizadas.

Tampouco há a necessidade de se usar criptomoedas para pagamento. Cartões de crédito e Pix são aceitos normalmente. Caso a pessoa queira transferir seus ativos para uma carteira fora da plataforma, sem problemas, ela pode, porém, para validar seus benefícios, obrigatoriamente tais ativos deverão estar dentro da carteira do sócio-torcedor. Vale ressaltar que tudo isso já é uma realidade de fácil implementação.

O problema apontado, a falta de posse real sobre os benefícios conquistados por fazer parte de um programa de sócio-torcedor, é resolvido de forma simples: basta tornar cada benefício deste um token não fungível e colocá-lo na carteira do participante. Ao ser um NFT, o benefício pode ser usado por quem o possui, mas também passa a poder ser comercializado, caso a pessoa não queira ou não possa usufruir do mesmo.

Digamos que este benefício seja uma visita ao Centro de Treinamento do clube. Se a pessoa quer comparecer, ela faz o check-in na própria plataforma e seu token fica “travado”, sem poder ser movimentado. Se ela não quer, sem problemas: ela lista o token em um marketplace dentro da plataforma e um outro membro do programa pode comprá-lo. O valor é definido entre as partes, e o clube, como intermediador, ganha um percentual sobre a negociação. É bom para todo mundo: quem dedicou tempo e dinheiro para conquistar o benefício é remunerado por isso; quem não teve acesso à experiência via sócio-torcedor pode comprá-lo; e o clube faz uma receita adicional automática.

Tais benefícios podem ter data de validade ou não, e, após o uso, tornam-se colecionáveis digitais, que também podem ser utilizados de outras maneiras. Imagine, por exemplo, uma gamificação, em que quem junta determinado número de colecionáveis pode ter acesso a outras vantagens. Isso, por si só, alimentaria um mercado secundário gerador de novas receitas.

Os pontos também podem ser transformados em tokens, neste caso, fungíveis, permitindo sua comercialização entre membro e clube, e entre os membros entre si. Seria mais uma maneira de premiar aqueles que se dedicam a participar e injetar liquidez no programa.

Outras possibilidades

Nesse texto, explorei apenas uma das possibilidades que um sócio-torcedor 3.0 pode adotar para se tornar mais atrativo. Podemos pensar em muitas outras, como os próprios ingressos se tornando NFTs; a criação de comunidades exclusivas para quem tem determinados tokens, com acesso a conteúdos especiais; governança em decisões relacionadas ao programa e ao clube; abertura para cocriar produtos usando IPs autorizados pelo clube, com chance de remuneração caso estes produtos sejam colocados no mercado; o uso dos tokens para integração entre diferentes serviços do clube, de forma muito mais simples do que com as APIs usadas atualmente (pense que um NFT de membro do programa de sócio-torcedor pode dar descontos na loja oficial on-line ou em plataformas de parceiros ao simplesmente conectar a carteira); tokenização de receitas futuras do programa, que permite às pessoas investir e ter participação financeira no sucesso do programa de sócio-torcedor, criando um “member get member” muito mais poderoso; e mais (escreverei sobre estas oportunidades em futuros artigos por aqui).

Todas estas possibilidades são maneiras de tornar os sócios-torcedores partes relevantes do programa, fazendo com que a estrutura e a tomada de decisões sejam menos de cima para baixo e mais de baixo para cima. Em um mundo no qual a competição pela atenção e pelo bolso está acirrada, com diversas opções de lazer acessíveis, a qualquer momento, na palma da mão, dar às pessoas um papel ativo será cada vez mais fundamental para se destacar. E programas de sócio-torcedor, com sua importância financeira para os clubes, devem se preocupar com isso.

Felipe Ribbe é diretor geral da Socios.com no Brasil, orientador de algumas empresas de Web3, consultor em inovação no esporte e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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