Jogos Olímpicos: Do amadorismo ao profissionalismo

Alison dos Santos, o Piu, é um dos principais nomes da atual geração do atletismo nacional - Jonne Roriz / COB

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 se avizinham. O mundo vive a expectativa do evento que se iniciará em pouco mais de dois meses, enquanto alguns atletas ainda disputam as últimas vagas e aqueles já classificados ajustam os detalhes finais da preparação para o que, na maioria das modalidades, representa o ápice do esporte.

Esse ápice é tradicionalmente representado pela medalha, símbolo máximo da glória olímpica. Porém, em Paris, alguns campeões olímpicos receberão também premiação em dinheiro paga pela própria Federação Internacional. No mês passado, a Federação Internacional de Atletismo, conhecida como World Athletics, divulgou que pagará US$ 50 mil aos atletas vencedores das provas de atletismo.

Não é novidade que o desempenho nos Jogos Olímpicos seja reconhecido com dinheiro, porém, até aqui, essas premiações eram comumente pagas por patrocinadores ou entidades esportivas nacionais, inclusive conforme a política de cada Comitê Olímpico Nacional. Contudo, segundo informado pela própria World Athletics no anúncio, esta será a primeira vez que o prêmio será pago pela própria Federação Internacional em uma edição de Jogos Olímpicos.

Se tomarmos como base o contexto de competições esportivas internacionais de modo geral, também não é novo o pagamento de premiação em dinheiro por parte de Federações Internacionais. Por exemplo, há cerca de 20 anos, a mesma Paris sediou o Campeonato Mundial de Atletismo, em que a mesma Federação Internacional de Atletismo já então pagava prêmios aos finalistas das provas. Sendo assim, por que razão somente em 2024 teremos uma (única, até o momento) Federação Internacional destinando premiação em dinheiro aos campeões olímpicos? A resposta provavelmente passa pela história do amadorismo e do profissionalismo nos Jogos Olímpicos, que se conta sobretudo por meio da Carta Olímpica.

A Carta Olímpica é o mais importante conjunto de normas do Movimento Olímpico. Trata-se do normativo que regulamenta o funcionamento do Comitê Olímpico Internacional (COI) e determina as regras básicas relacionadas aos Jogos Olímpicos, dentre outros aspectos. A evolução das suas normas ao longo do tempo evidencia o desenvolvimento da prática esportiva de alto rendimento, passando de atividade puramente amadora a predominantemente profissional.

Os Jogos Olímpicos da Era Moderna tiveram início no fim do século XIX, e, em 1906, o COI editou a primeira versão da Carta Olímpica. Mas foi em 1920 que, pela primeira vez, incorporaram-se a ela regras específicas sobre a organização dos Jogos Olímpicos, caracterizando o evento expressamente como uma competição entre amadores.

Já na década de 1930, o COI foi além e passou a estabelecer requisitos suplementares para garantir o amadorismo das competições olímpicas. Exigia-se então que cada atleta declarasse ser amador, e ficava expressamente vedado até mesmo o recebimento de reembolso ou compensação por perda de salário. Tampouco era possível ao atleta atuar de forma remunerada como professor de educação física ou de esporte.

Até então, o COI estabelecia de forma clara a rejeição a atletas profissionais nos Jogos Olímpicos, mas ainda tateava quanto à definição de “atleta amador”. Essa abordagem ficou para trás a partir da edição da Carta Olímpica de 1949, por meio da qual se determinaram (ainda que com algum grau de subjetividade) os aspectos que efetivamente caracterizavam um atleta como amador: a prática do esporte por prazer, por benefícios físicos, mentais ou sociais, e, mais do que isso, a ausência de ganhos materiais decorrentes dessa prática.

Em seguida, estabeleceu-se que não seriam considerados amadores os atletas cuja prática esportiva era subsidiada (seja pelo governo ou pela iniciativa privada). Já na década de 1960, o COI acrescentou proibições relativas à remuneração de atletas pelo uso de sua imagem.

Apesar de algumas modificações posteriores (inclusive prevendo exceções pontuais), fato é que, por quase um século, a elegibilidade de atletas para participação nos Jogos Olímpicos foi marcada por forte restrição ao recebimento de valores associados à prática esportiva. A abertura ao profissionalismo (ainda que não explícita) veio somente em 1990, quando a Carta Olímpica definitivamente outorgou às Federações Internacionais a prerrogativa de estabelecer as regras de elegibilidade de seus respectivos atletas, sem estipular restrições à sua remuneração nem à sua condição como amadores ou profissionais.

Não por acaso, os Jogos Olímpicos de 1992, em Barcelona, ficaram marcados como os primeiros em que os atletas da NBA, profissionais, puderam participar do torneio olímpico de basquete, formando-se o histórico Dream Team norte-americano. Desde então, a definição da participação de atletas profissionais ou amadores fica a critério exclusivo das Federações Internacionais.

Portanto, os Jogos Olímpicos são marcados por um longo histórico de amadorismo, baseado durante muito tempo nas regras do próprio COI. Ainda que isso reflita a evolução do esporte de modo geral (mesmo em competições não olímpicas), não há dúvidas de que o Movimento Olímpico teve de forma ainda mais específica o amadorismo como pilar fundamental de sua construção, com restrições expressas à remuneração dos atletas por qualquer conquista.

É nesse contexto que surpreende a muitos a iniciativa da Federação Internacional de Atletismo. Afinal, pela primeira vez, atletas olímpicos disputarão entre si não apenas a medalha de ouro, mas também um prêmio em dinheiro a ser pago pela Federação Internacional.

Há quem diga que a novidade contraria o espírito olímpico e a essência dos Jogos Olímpicos, o que, diante da perspectiva histórica exposta acima, é uma visão justa. Mas, ao que tudo indica, a premiação em dinheiro aos campeões olímpicos é apenas mais um passo dos muitos que foram dados no caminho de profissionalização do esporte ao longo das últimas décadas. E certamente não será o último deles.

Pedro Mendonça é advogado especializado na área esportiva desde 2010, com vasta experiência na assessoria a diversas entidades esportivas, como comitês, confederações e clubes, além de atletas, e escreve mensalmente na Máquina do Esporte

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