Cidade do México, 1968. Em meio às lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos, dois esportistas do país, que disputavam os Jogos Olímpicos daquele ano, protagonizaram uma imagem que ficou marcada na história do esporte. Ao subirem ao pódio para receber as medalhas conquistadas na prova dos 200 metros rasos, Tommie Smith e John Carlos resolveram utilizar os holofotes daquele momento para protestar com o punho levantado, na saudação do “Black Power”, gesto característico do Partido dos Panteras Negras, mais influente organização de luta dos negros norte-americanos naquela época.
O Comitê Olímpico Internacional (COI) não tolerou a manifestação dos dois jovens atletas e resolveu bani-los para sempre dos Jogos. Os anos se passaram, e a discriminação racial contra a qual Smith e Carlos tanto lutaram (sacrificando suas carreiras promissoras) continua a existir.
Mais de cinco décadas depois desse fato, porém, uma nova consciência começa a inspirar aqueles que definem os rumos no esporte. O COI pode ainda ter suas restrições a esse tipo de manifestação em pódios olímpicos. Mas, em contrapartida, ligas profissionais, times e marcas esportivas não apenas toleram que seus atletas se posicionem sobre temas políticos e sociais, como até mesmo os incentivam nessas lutas.
Black Lives Matter
A liga profissional de basquete masculino dos Estados Unidos (NBA) é um dos exemplos mais notórios dessa nova mentalidade. A entidade tem se manifestado de maneira contundente a respeito de temas raciais, chegando a apoiar abertamente o Black Lives Matter, movimento criado para protestar contra a violência e a discriminação cometidas contra pessoas negras, especialmente atos praticados por policiais e agentes de segurança, que resultaram em mortes.
O movimento foi criado em 2013 para protestar contra a absolvição do segurança George Zimmerman, acusado de ser o responsável pelo homicídio do adolescente afro-americano Trayvon Martin, ocorrido no ano anterior na Flórida. A mobilização começou com o uso da hashtag #BlackLivesMatter (#VidasNegrasImportam) e acabou ganhando as ruas em 2014.
Em 2020, dois casos notórios ganharam repercussão mundial e geraram uma onda de protestos não apenas nas ruas, mas também nos ginásios e estádios. Em 25 de maio, em Minneapolis, no estado de Minnesota, George Floyd foi morto após ser asfixiado pelo joelho de um policial branco durante 8 minutos e 46 segundos.
Floyd, na juventude, havia sido jogador de futebol americano e era amigo pessoal de Stephen Jackson, campeão da temporada 2002/2003 da NBA pelo San Antonio Spurs. Indignado, o jogador fez, à época, um duro discurso cobrando justiça e solidarizando-se com a família da vítima.
Ele não foi o único. LeBron James e outras estrelas da NBA também se posicionaram. O ala do Los Angeles Lakers utilizou uma camiseta do Black Lives Matter e outra que trazia estampada a frase “I can’t breathe” (“Eu não posso respirar”, em tradução livre), frase repetida por Floyd enquanto era sufocado pelo joelho do policial.
Em 23 de agosto do mesmo ano, outro caso de violência policial levaria os atletas a adotarem medidas mais drásticas. Em protesto contra a morte de Jacob Blake, um homem negro de 29 anos que levou sete tiros pelas costas disparados por policiais brancos em Kenosha, no estado de Wisconsin, jogadores do Milwaukee Bucks decidiram realizar um boicote e não participaram do jogo contra o Orlando Magic, marcado para a noite de 24 de agosto.
Houston Rockets, Oklahoma City Thunder, Los Angeles Lakers e Portland Trail Blazers também tiveram seus jogos adiados. À época, a diretoria dos Bucks emitiu uma nota declarando apoio aos jogadores.
Atletas da liga feminina de basquete profissional dos Estados Unidos (WNBA) também aderiram ao protesto, com adiamento da rodada. Jogadoras do Washington Mistics fizeram um ato utilizando camisetas brancas com manchas vermelhas nas costas, em alusão às balas que alvejaram Blake.
Diferentemente do ocorrido no pódio olímpico de 1968, desta vez os times e as ligas apoiaram prontamente os jogadores, que também tiveram respaldo dos patrocinadores. Grandes empresas como Nike, Netflix, Warner e YouTube aderiram ao Black Lives Matter, ajudando a ampliar a repercussão do movimento.
E no Brasil?
Em 2020, em meio à comoção em torno da morte de Floyd, diversos clubes de futebol do Brasil compartilharam nas redes sociais posts inspirados no Black Lives Matter. Desde então, ocorreram no país inúmeros casos similares ao de Floyd, como o do imigrante congolês Moïse Kabagambe, que foi espancado até a morte por seguranças de um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Porém, a reação no meio esportivo brasileiro não chegou nem perto da observada nas ligas norte-americanas.
Vários fenômenos explicam essa situação, na visão do diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho. Um deles é de ordem histórica. Na visão dele, existe no país um processo de apagamento de esportistas que ousaram se posicionar politicamente.
“As pessoas se esquecem das portas que se fecharam para os negros que tentaram se manifestar contra o racismo, como Gentil Cardoso, nos anos 1950, ou o atacante Reinaldo, no fim dos anos 1970, quando um general foi até a Argentina para retirá-lo da seleção que disputava a Copa do Mundo. Ou mesmo mais recentemente, o goleiro Aranha e o árbitro Márcio Chagas, que foram vítimas de racismo. Todos eles tiveram suas carreiras abreviadas por denunciarem a discriminação”, afirmou o pesquisador.
Pelé
Considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos, Pelé volta e meia costuma ser cobrado por conta de sua postura em relação às questões raciais, que, na visão de alguns, não seria tão contundente quanto a de ídolos do esporte norte-americano, caso do boxeador Muhammad Ali (1942-2016), que fazia questão de expressar suas convicções políticas publicamente.
“É um erro dizer que Pelé não se posicionou sobre o racismo. Primeiramente, precisamos analisar o contexto em que ele jogou. Durante boa parte da carreira dele, o Brasil foi uma ditadura. Então, a tendência é que a imprensa nem mesmo repercutisse posicionamentos críticos dele, até porque existia a censura. E Pelé sabia bem que, se assumisse posições, acabaria sofrendo retaliações, como diversos intelectuais negros que foram perseguidos pelo regime”, analisou Carvalho.
O pesquisador lembrou que a perseguição a atletas que protestam também ocorre lá fora. Além dos casos de Tommie Smith e John Carlos, um episódio recente de punição ganhou notoriedade, quando Colin Kaepernick, do San Francisco 49ers, foi expulso da liga profissional de futebol americano dos Estados Unidos (NFL) após se ajoelhar durante a execução do hino nacional do país, em protesto contra a desigualdade e a violência racial.
Para Carvalho, o envolvimento dos atletas brasileiros no debate sobre a questão racial e outros temas sociais deverá se intensificar na medida em que eles se sentirem respaldados pelos clubes e os patrocinadores, para poderem se expressar.
“Eles vão falar sobre esse problema quando tiverem a certeza de que estão amparados e protegidos pelas marcas e os times”, finalizou o diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.