Quando, em meio à Copa do Mundo do Catar 2022, a imprensa internacional passou a cogitar a possibilidade de o craque português Cristiano Ronaldo ir jogar no Al-Nassr, da Arábia Saudita, muita gente encarou a história como bazófia. Na medida em que as negociações avançaram e acabaram se concretizando, não faltou quem vaticinasse que a carreira do astro (que acabara de ter seu contrato rompido pelo Manchester United, da Inglaterra) havia chegado ao fim.
Os meses se passaram e, se não podemos afirmar que Cristiano Ronaldo atravessa uma fase que lembra seu auge, tampouco é possível dizer que ele vive um clima de fim de festa. Longe disso. CR7 no Al-Nassr acabou servindo como um desbravador de caminhos. Depois dele, outros astros que brilhavam em grandes potências europeias decidiram fazer as malas rumo à Península Arábica, motivados pelas cifras milionárias oferecidas pelos clubes sauditas.
É o caso de Karim Benzema, N’Golo Kanté, Sadio Mané e, mais recentemente, Neymar, em uma negociação bilionária com o Al-Hilal, concretizada nesta terça-feira (16). Isso sem contar os também brasileiros Romarinho, Alex Telles e Roberto Firmino.
Não é a primeira vez que a Arábia Saudita seduz grandes craques do futebol. No fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, por exemplo, Roberto Rivellino, campeão da Copa de 1970 e que herdou de Pelé a camisa 10 da seleção brasileira, já havia desfilado seu talento pelos gramados da Arábia Saudita, no mesmo Al-Hilal que hoje celebra a contratação de Neymar.
Mas nunca antes na história do país asiático o campeonato local de futebol havia alcançado tamanha dimensão, reunindo ao mesmo tempo tantos astros de projeção global.
PIF
Os investimentos gigantescos feitos pela Liga Saudita na contratação de craques devem ser lidos em um contexto muito mais amplo. Para início de conversa, eles não se limitam ao futebol. Há alguns anos, o país do Oriente Médio vem despejando rios de dinheiro em diferentes modalidades, como tênis, golfe, Fórmula 1 (neste caso, por meio da petrolífera estatal Aramco) e até e-Sports.
A sanha por investir no esporte é tamanha que a nação localizada no meio do deserto escaldante conseguiu a proeza de ser escolhida como sede dos Jogos Asiáticos de Inverno de 2029, com direito a uma cidade nevada que será construída especialmente para o evento.
A Arábia Saudita injeta dinheiro tanto em competições e clubes do país quanto do exterior. O Al-Hilal, de Neymar, por exemplo, é controlado pelo Fundo de Investimento Público do país, conhecido pela sigla em inglês PIF, que se tornou uma das palavras mais recorrentes no noticiário esportivo internacional nos últimos meses.
O PIF também é o principal investidor da LIV Golf, acionista majoritário do Newcastle, da Inglaterra, e dono da Riyadh Air, empresa que acabou de se tornar patrocinadora máster do Atlético de Madrid. Na Liga Saudita, o fundo de investimento saudita possui 75% das ações do Al-Nassr, de Cristiano Ronaldo; do Al-Ittihad, de Karim Benzema; e do Al-Ahli, de Roberto Firmino e Édouard Mendy.
“Soft power”
A avalanche de craques que inunda os gramados sauditas faz parte de um negócio que vai muito além do esporte. Hoje, os investimentos que o país árabe faz nas diferentes modalidades representa a principal expressão do seu “soft power”.
Formulada no fim dos anos 1980, pelo pesquisador Joseph Nye, de Harvard, esse conceito da teoria das relações internacionais é usado para descrever a habilidade de uma nação em influenciar, de maneira indireta, o comportamento ou os interesses de outros corpos políticos por meios culturais ou ideológicos.
Enquadram-se nessa definição filmes e seriados dos Estados Unidos, mangás e animes do Japão ou mesmo grupos de K-pop da Coreia do Sul. São produtos que, para além da mensagem específica que carregam, ajudam a construir uma imagem internacional positiva de cada um desses países.
O esporte, hoje, tem o papel fundamental de tentar aliviar as diversas críticas que recaem sobre o regime político da Arábia Saudita, marcado por perseguições a dissidentes políticos e também a mulheres, pessoas LGBTQIA+ e minorias religiosas. Pela manhã, quando a contratação de Neymar pelo Al-Hilal foi confirmada, essa questão rendeu polêmica no X (antigo Twitter) entre o jornalista Guga Chacra, que comenta sobre relações internacionais na Globo News, e Antonio Tabet, fundador do Porta dos Fundos e do Canal Goat.
O Global Soft Power Index, publicado anualmente pela consultoria Brand Finance, do Reino Unido, demonstra o quanto os investimentos em esporte contribuem para melhorar a imagem global da Arábia Saudita e de seus vizinhos, que também possuem regimes políticos muito parecidos.
De 2020 para 2021, por exemplo, a Arábia Saudita havia obtido alta de 2,3 pontos em sua avaliação, alcançando a 24ª posição no ranking geral, liderado pela Alemanha. Na edição deste ano do Brand Finance Global Soft Power Index, o local de trabalho de Cristiano Ronaldo e de outros tantos craques do futebol mundial já havia saltado para o 19º lugar.
A tendência é que a avaliação global do país melhore ainda mais nas próximas edições do relatório. A Liga Saudita de Futebol deste ano (divulgada internacionalmente com o nome de Saudi Pro League) será exibida por mais de 130 emissoras ao redor do mundo. A comercialização dos direitos de transmissão da competição é feita pela IMG.
No Brasil, antes mesmo da confirmação da ida de Neymar para o Al-Hilal, a transmissão da Liga Saudita já havia sido garantida pelo Canal Goat, no streaming, e pelo Grupo Bandeirantes, nas TVs aberta e por assinatura.
Saudi Vision 2030
Os investimentos do PIF, inclusive na área esportiva, fazem parte da estratégia definida em 2016 pelo príncipe herdeiro Mohammad bin Salman, visando reduzir a dependência da Arábia Saudita em relação ao petróleo (que hoje responde por 40% do Produto Interno Bruto (PIB) real do país), por meio da diversificação econômica e do estímulo a áreas como turismo, educação, saúde e serviços públicos.
Batizado de Saudi Vision 2030, o programa estratégico busca também promover uma imagem mais leve e secular do país, prevendo, inclusive, a entrada de mulheres no mercado de trabalho.
Clubes e patrocinadores
De acordo com a plataforma Transfermarkt, os 18 clubes que disputarão a temporada 2023/2024 da Liga Saudita de Futebol contam com 142 jogadores estrangeiros. A idade média dos elencos é de 27,9 anos, e os valores de mercado de todos os atletas somados estão avaliados em € 843 milhões.
Os dois elencos mais caros são justamente o do Al-Hilal, de Neymar, cotado em € 221,2 milhões, e o do Al-Nassr, de Cristiano Ronaldo, avaliado em € 152,98 milhões.
Entre os parceiros comerciais da Liga Saudita de Futebol 2023/2024 predominam empresas estatais. A principal é a empreiteira Roshn, pertencente ao PIF e que está à frente dos principais projetos habitacionais do país. A construtora é patrocinadora máster do campeonato.
A Associação Beneficente Amigos dos Jogadores de Futebol, que funciona sob a supervisão do Ministério de Recursos Humanos e Desenvolvimento Social, também é parceira da competição. Outro patrocinador é o Banco Alinma, que foi criado com investimentos do PIF, da Agência de Pensões Públicas da Arábia Saudita (PPA) e da Organização Geral de Seguro Social da Arábia Saudita (Gosi).
Para não dizer que a Liga Saudita não tem parceiros na iniciativa privada, um de seus patrocinadores é a EA Sports, que promove nesta temporada do campeonato o seu último jogo da série Fifa.