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Botafogo: Prejuízo e disparada nos gastos com elenco expõem riscos do projeto multiclubes de John Textor

Última da Série A a divulgar o balanço de 2024, SAF do Glorioso registrou resultado líquido negativo de R$ 299 milhões na temporada passada

Empresário John Textor é dono de 90% da SAF do Botafogo - Reprodução / Instagram (@botafogo)

Existe uma máxima famosa, que costuma ser repetida com frequência em situações de conflito bélico. Ela afirma que “na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”.

Assim como as disputas entre as nações são marcadas pela tentativa de se controlar o fluxo de informação, os confrontos do mundo das finanças também são dominados pelo embate de narrativas.

O Botafogo, que é parte de uma guerra particular travada pelo empresário norte-americano John Textor contra seus sócios na Eagle Football Holdings, divulgou nesta semana o balanço relativo a 2024.

A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Glorioso foi a última, entre os times que disputam a Série A do Brasileirão, a apresentar os resultados financeiros alcançados na temporada passada (que, nas palavras de Textor, foi “o maior ano” da história centenária do clube).

O relatório é oficial e verificado pela BDO RCS Auditores Independentes SS Ltda., a qual opina “que os referidos documentos estão em condições de serem apreciados pela assembleia geral ordinária dos acionistas”.

“Copo meio cheio”

Ainda assim, a Gestão Textor aproveita a parte inicial do material para divulgar sua versão “copo meio cheio” dos resultados financeiros alcançados pela SAF do Botafogo em 2024.

Na mensagem redigida em primeira pessoa, o norte-americano destaca feitos esportivos, como os títulos da Copa Libertadores e do Brasileirão, além da classificação obtida pelo time da Estrela Solitária para a Copa do Mundo de Clubes 2025, promovida pela Federação Internacional de Futebol (Fifa).

A indicação do Glorioso ao prêmio Bola de Ouro, da revista France Football, foi outro feito elencado pelo dono da SAF.

“Somos o primeiro clube brasileiro, em todos os tempos, a disputar essa honraria, levando ao mundo a força da nossa marca e dividindo os holofotes ao lado de PSG, Barcelona, Liverpool e Chelsea”, escreveu o (ainda) dono da Eagle.

O aumento nas receitas brutas, que alcançaram R$ 720 milhões no ano passado, é mostrado como o sinal inequívoco da eficiência do método Textor de gestão.

As premiações em dinheiro alcançadas pelo time na temporada passada foram decisivas para esse faturamento. Em 2024, elas totalizaram R$ 258 milhões, um aumento de 323% em relação aos R$ 61 milhões obtidos pelo Botafogo no ano anterior.

Na última temporada, a SAF também ampliou suas receitas com patrocínios (que subiram de R$ 16,5 milhões, em 2023, para R$ 56 milhões, na temporada seguinte) e ainda foi favorecida pelo crescimento de 73% da renda proporcionada pelo programa de sócio-torcedor Camisa 7 (“um espetáculo à parte”, nas palavras de Textor), que ultrapassou a marca de 81 mil sócios e injetou R$ 48,6 milhões nos cofres do clube.

Já a venda de produtos licenciados registrou um salto anual de 182%, com R$ 66 milhões faturados em 2024.

“Copo meio vazio”

A condição necessária para que um copo esteja meio cheio é que parte dele esteja vazia. E é nesse espaço que ficam à mostra os riscos do projeto multiclubes de John Textor.

Para conquistar o Brasil e a América do Sul, carimbando o passaporte para a Copa do Mundo de Clubes nos Estados Unidos, o Botafogo declarou ter gastado com o elenco praticamente tudo o que faturou em 2024.

Na temporada passada, a SAF investiu R$ 691 milhões em atletas, R$ 29 milhões a menos do que a receita bruta de R$ 720 milhões, registrada no período.

Em 2023, quando o Botafogo chegou a liderar durante várias rodadas a Série A do Brasileirão, até perder fôlego na disputa pelo título e terminar na quinta colocação geral, o investimento feito em atletas foi de R$ 252 milhões.

A disparada nos gastos com elenco, com acréscimo de R$ 440 milhões, foi decisiva para o prejuízo de R$ 299,9 milhões registrado pela SAF do Glorioso na última temporada.

Embora o resultado financeiro negativo lance dúvidas quanto à sustentabilidade do projeto esportivo baseado em gastos elevados com contratações, a gestão do clube enxerga aspectos positivos nesse volume de investimento.

“A chegada de atletas como Luiz Henrique, Igor Jesus, Thiago Almada e Savarino consolidou o elenco como um dos mais qualificados do continente, entregando os resultados esperados pela torcida e impulsionando a valorização do ativo esportivo. Com o suporte do Núcleo de Saúde e Performance, o elenco masculino atingiu valorização próxima a 100%, com potencial de venda de cerca de R$ 950 milhões”, afirma o documento.

“Essa valorização reforça a sustentabilidade do modelo adotado pela SAF, ao permitir negociações com margens de lucro relevantes e geração de caixa recorrente. O equilíbrio entre investimento esportivo e retorno financeiro fortalece a estrutura do clube e abre espaço para novas oportunidades de crescimento no médio e longo prazo”, prossegue.

Disputa com a Eagle

A disparada nos gastos com o elenco foi uma das causas do quase rebaixamento do Lyon na Ligue 1 francesa.

O clube, que é gerido pelo Eagle Football Group (parte do conglomerado Eagle Football Holdings), esteve em vias de cair para a segunda divisão da França por conta da violação das regras de Fair Play Financeiro, ao não apresentar garantias de que seria capaz de saldar débitos de € 175 milhões (mais que o triplo do que o empresário pagou por 90% da SAF do Botafogo), que estavam em vias de vencer.

Para livrar o Lyon do rebaixamento, Textor teve de se retirar da gestão do clube. Desde então, o grupo liderado pela investidora Michele Kang e a Ares Management (principal financiadora do projeto multiclubes da Eagle) não apenas assumiu a gestão do time francês, como se movimenta nos bastidores e na Justiça para expulsar o norte-americano dos negócios no futebol.

Na tentativa de blindar parte de seus investimentos, Textor resolveu criar uma empresa nas Ilhas Cayman, que também foi batizada de Eagle Football Group e ficaria encarregada de adquirir o Botafogo e o Daring Bruxelas, da Bélgica.

Depois de viver um ano repleto de glórias e conquistas, nesta temporada o Botafogo vai encarando o sabor da ressaca, em meio à disputa judicial iniciada na França, mas que já chegou aos tribunais brasileiros.

Hoje, o comando do clube associativo é totalmente alinhado a Textor. Quando a disputa com a Eagle eclodiu, no mês passado, os dirigentes se movimentaram rapidamente a fim de impedir qualquer mudança no controle do Botafogo. O estatuto da SAF garante à associação o poder de barrar alterações na estrutura societária.

Se o plano de Textor de transferir o Botafogo para a empresa das Ilhas Cayman vingar, o clube deixaria de integrar o patrimônio da Eagle Football Holdings.

Com isso, o empresário vive a situação inusitada de seguir como maior acionista do grupo de investimentos e, ao mesmo tempo, ser questionado na Justiça pela própria empresa da qual é (em tese) dono.

No mês passado, a Eagle ingressou com uma ação cautelar na 2ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), para impedir Textor de fazer mudanças na SAF sem consultar os acionistas da empresa.

Atualmente, as ações da Eagle na SAF do time da Estrela Solitária estão bloqueadas, por força de uma decisão da 3ª Vara Empresarial do TJ-RJ.

A polêmica ganhou força depois da reestruturação financeira do Botafogo, promovida no mês passado e que autorizou a venda, para a nova empresa das Ilhas Cayman, de uma dívida de R$ 150 milhões que o clube teria a receber da Eagle. Além disso, o plano liberou um empréstimo no valor de R$ 100 milhões, que tem como garantias as receitas da SAF até 2029.

A Eagle enxerga nessa movimentação uma manobra de Textor para retirar o Botafogo do grupo. Ao se manifestar na ação, o clube associativo requereu ao juiz que analisa o caso o direito de diluir as ações da investidora, que correria o risco de perder o controle da SAF.

O Acordo de Acionistas hoje em vigor obriga a Eagle a manter o endividamento do clube controlado e a realizar, até 2028, aportes na SAF, sempre que ela não contar com recursos suficientes para cumprir com suas obrigações orçamentárias.

Em uma nota publicada no início do mês, a SAF negou que as medidas aprovadas em julho tivessem como finalidade expulsar a Eagle do controle do Botafogo.

“Para fins de esclarecimento, destacamos que as ações societárias tomadas até o momento consistem apenas em autorizações legais e que não há, no presente momento, qualquer plano que vise à diluição da participação acionária do nosso sócio majoritário. Inclusive, tais medidas seriam necessárias para possibilitar que o próprio acionista majoritário realize novos investimentos”, diz o texto.

Guerra de narrativas

A disputa entre o empresário norte-americano e seus sócios na Eagle colocou o Botafogo em rota de colisão com o Lyon.

Inicialmente, na época do quase rebaixamento do clube francês, o jornal L’Équipe divulgou a notícia de que a equipe francesa usou recursos para contratar jogadores que nunca atuaram na Ligue 1. Eles teriam sido repassados diretamente ao time brasileiro.

O Lyon chegou a contabilizar 50 atletas na temporada 2024/2025, embora o elenco possuísse em torno de 30 jogadores de fato.

O Botafogo resolveu, então, contra-atacar com as mesmas armas, cobrando do Lyon uma dívida de € 128 milhões.

Segundo uma notícia originalmente publicada pelo portal GE, a SAF botafoguense alega ter feito uma série de repasses ao clube francês desde 2023, de modo a auxiliá-lo a se adequar às regras de Fair Play Financeiro e seguir na Ligue 1.

A quantia envolve ainda as transferências dos jogadores Thiago Almada e Igor Jesus, acertadas com o Lyon, mas que não se efetivaram, pois o clube estava sujeito a um “transfer ban”.

As operações financeiras envolvendo o Lyon são mencionadas no balanço do Botafogo referente a 2024.

“A SAF Botafogo negociou os direitos econômicos futuros de dois de seus jogadores com o Olympique Lyonnais SASU, em uma operação avaliada em € 56,4 milhões. Parte desse montante foi recebida ao longo do exercício de 2024, estando o saldo remanescente registrado no ativo como contas a receber, com previsão de recebimento em períodos subsequentes”, diz o documento.

Áudio de Montenegro

Um áudio do ex-presidente do clube Carlos Augusto Montenegro, que veio a público no começo deste mês, serviu para ampliar o clima de incerteza envolvendo a SAF do Botafogo.

“O Textor, agora, está tentando sair fora da Eagle. Na verdade, já saiu no papel, parece que é isso. Mas está tentando ficar com o Botafogo. Só que ele precisa de dinheiro. Ele, pessoa física, não tem dinheiro e está tentando falar com outras pessoas para ajudar a comprar. A Ares não quer negociar muito com ele, mesmo ele tendo dinheiro. Deve ter feito algumas e outras coisas não muito interessantes”, disse o ex-mandatário botafoguense.

Em sua fala, o ex-presidente ainda comentou sobre a disputa de Textor com a Ares Management pelo controle da Eagle e dos clubes de futebol.

“Essa Ares é o segundo maior fundo de investimento dos Estados Unidos. Não tem esse negócio de história, de 100 anos de Botafogo, não. O que tem agora é dinheiro em cima da mesa. É uma briga entre os sócios que compraram o Botafogo e ficaram com 90% da SAF. Teoricamente, a gente não tem nada a ver com essa briga, mas é o que está acontecendo”, afirmou Montenegro.

Atualmente, o Botafogo disputa as oitavas de final da Copa Libertadores. No jogo de ida, realizado nesta quinta-feira (14), no Rio de Janeiro (RJ), o clube levou a melhor sobre a LDU (EQU), vencendo por 1 a 0.

Na Copa do Brasil, o time disputará as quartas de final diante do rival Vasco. E, por último, na Série A do Brasileirão, a equipe ocupa atualmente a quinta posição, com 29 pontos, 11 a menos que o líder Flamengo.

No país do futebol, onde troféus e vitórias muitas vezes acabam representando o principal critério de verdade, John Textor ainda está com prestígio em alta entre torcedores e dirigentes alvinegros. Resta saber até quando esse modelo “destemido” de gestão conseguirá se sustentar.