Existe uma máxima famosa, que costuma ser repetida com frequência em situações de conflito bélico. Ela afirma que “na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”.
Assim como as disputas entre as nações são marcadas pela tentativa de se controlar o fluxo de informação, os confrontos do mundo das finanças também são dominados pelo embate de narrativas.
O Botafogo, que é parte de uma guerra particular travada pelo empresário norte-americano John Textor contra seus sócios na Eagle Football Holdings, divulgou nesta semana o balanço relativo a 2024.
A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Glorioso foi a última, entre os times que disputam a Série A do Brasileirão, a apresentar os resultados financeiros alcançados na temporada passada (que, nas palavras de Textor, foi “o maior ano” da história centenária do clube).
O relatório é oficial e verificado pela BDO RCS Auditores Independentes SS Ltda., a qual opina “que os referidos documentos estão em condições de serem apreciados pela assembleia geral ordinária dos acionistas”.
“Copo meio cheio”
Ainda assim, a Gestão Textor aproveita a parte inicial do material para divulgar sua versão “copo meio cheio” dos resultados financeiros alcançados pela SAF do Botafogo em 2024.
Na mensagem redigida em primeira pessoa, o norte-americano destaca feitos esportivos, como os títulos da Copa Libertadores e do Brasileirão, além da classificação obtida pelo time da Estrela Solitária para a Copa do Mundo de Clubes 2025, promovida pela Federação Internacional de Futebol (Fifa).
A indicação do Glorioso ao prêmio Bola de Ouro, da revista France Football, foi outro feito elencado pelo dono da SAF.
“Somos o primeiro clube brasileiro, em todos os tempos, a disputar essa honraria, levando ao mundo a força da nossa marca e dividindo os holofotes ao lado de PSG, Barcelona, Liverpool e Chelsea”, escreveu o (ainda) dono da Eagle.
O aumento nas receitas brutas, que alcançaram R$ 720 milhões no ano passado, é mostrado como o sinal inequívoco da eficiência do método Textor de gestão.
As premiações em dinheiro alcançadas pelo time na temporada passada foram decisivas para esse faturamento. Em 2024, elas totalizaram R$ 258 milhões, um aumento de 323% em relação aos R$ 61 milhões obtidos pelo Botafogo no ano anterior.
Na última temporada, a SAF também ampliou suas receitas com patrocínios (que subiram de R$ 16,5 milhões, em 2023, para R$ 56 milhões, na temporada seguinte) e ainda foi favorecida pelo crescimento de 73% da renda proporcionada pelo programa de sócio-torcedor Camisa 7 (“um espetáculo à parte”, nas palavras de Textor), que ultrapassou a marca de 81 mil sócios e injetou R$ 48,6 milhões nos cofres do clube.
Já a venda de produtos licenciados registrou um salto anual de 182%, com R$ 66 milhões faturados em 2024.
“Copo meio vazio”
A condição necessária para que um copo esteja meio cheio é que parte dele esteja vazia. E é nesse espaço que ficam à mostra os riscos do projeto multiclubes de John Textor.
Para conquistar o Brasil e a América do Sul, carimbando o passaporte para a Copa do Mundo de Clubes nos Estados Unidos, o Botafogo declarou ter gastado com o elenco praticamente tudo o que faturou em 2024.
Na temporada passada, a SAF investiu R$ 691 milhões em atletas, R$ 29 milhões a menos do que a receita bruta de R$ 720 milhões, registrada no período.
Em 2023, quando o Botafogo chegou a liderar durante várias rodadas a Série A do Brasileirão, até perder fôlego na disputa pelo título e terminar na quinta colocação geral, o investimento feito em atletas foi de R$ 252 milhões.
A disparada nos gastos com elenco, com acréscimo de R$ 440 milhões, foi decisiva para o prejuízo de R$ 299,9 milhões registrado pela SAF do Glorioso na última temporada.
Embora o resultado financeiro negativo lance dúvidas quanto à sustentabilidade do projeto esportivo baseado em gastos elevados com contratações, a gestão do clube enxerga aspectos positivos nesse volume de investimento.
“A chegada de atletas como Luiz Henrique, Igor Jesus, Thiago Almada e Savarino consolidou o elenco como um dos mais qualificados do continente, entregando os resultados esperados pela torcida e impulsionando a valorização do ativo esportivo. Com o suporte do Núcleo de Saúde e Performance, o elenco masculino atingiu valorização próxima a 100%, com potencial de venda de cerca de R$ 950 milhões”, afirma o documento.
“Essa valorização reforça a sustentabilidade do modelo adotado pela SAF, ao permitir negociações com margens de lucro relevantes e geração de caixa recorrente. O equilíbrio entre investimento esportivo e retorno financeiro fortalece a estrutura do clube e abre espaço para novas oportunidades de crescimento no médio e longo prazo”, prossegue.
Disputa com a Eagle
A disparada nos gastos com o elenco foi uma das causas do quase rebaixamento do Lyon na Ligue 1 francesa.
O clube, que é gerido pelo Eagle Football Group (parte do conglomerado Eagle Football Holdings), esteve em vias de cair para a segunda divisão da França por conta da violação das regras de Fair Play Financeiro, ao não apresentar garantias de que seria capaz de saldar débitos de € 175 milhões (mais que o triplo do que o empresário pagou por 90% da SAF do Botafogo), que estavam em vias de vencer.
Para livrar o Lyon do rebaixamento, Textor teve de se retirar da gestão do clube. Desde então, o grupo liderado pela investidora Michele Kang e a Ares Management (principal financiadora do projeto multiclubes da Eagle) não apenas assumiu a gestão do time francês, como se movimenta nos bastidores e na Justiça para expulsar o norte-americano dos negócios no futebol.
Na tentativa de blindar parte de seus investimentos, Textor resolveu criar uma empresa nas Ilhas Cayman, que também foi batizada de Eagle Football Group e ficaria encarregada de adquirir o Botafogo e o Daring Bruxelas, da Bélgica.
Depois de viver um ano repleto de glórias e conquistas, nesta temporada o Botafogo vai encarando o sabor da ressaca, em meio à disputa judicial iniciada na França, mas que já chegou aos tribunais brasileiros.
Hoje, o comando do clube associativo é totalmente alinhado a Textor. Quando a disputa com a Eagle eclodiu, no mês passado, os dirigentes se movimentaram rapidamente a fim de impedir qualquer mudança no controle do Botafogo. O estatuto da SAF garante à associação o poder de barrar alterações na estrutura societária.
Se o plano de Textor de transferir o Botafogo para a empresa das Ilhas Cayman vingar, o clube deixaria de integrar o patrimônio da Eagle Football Holdings.
Com isso, o empresário vive a situação inusitada de seguir como maior acionista do grupo de investimentos e, ao mesmo tempo, ser questionado na Justiça pela própria empresa da qual é (em tese) dono.
Atualmente, as ações da Eagle na SAF do time da Estrela Solitária estão bloqueadas, por força de uma decisão da 3ª Vara Empresarial do TJ-RJ.
A polêmica ganhou força depois da reestruturação financeira do Botafogo, promovida no mês passado e que autorizou a venda, para a nova empresa das Ilhas Cayman, de uma dívida de R$ 150 milhões que o clube teria a receber da Eagle. Além disso, o plano liberou um empréstimo no valor de R$ 100 milhões, que tem como garantias as receitas da SAF até 2029.
A Eagle enxerga nessa movimentação uma manobra de Textor para retirar o Botafogo do grupo. Ao se manifestar na ação, o clube associativo requereu ao juiz que analisa o caso o direito de diluir as ações da investidora, que correria o risco de perder o controle da SAF.
O Acordo de Acionistas hoje em vigor obriga a Eagle a manter o endividamento do clube controlado e a realizar, até 2028, aportes na SAF, sempre que ela não contar com recursos suficientes para cumprir com suas obrigações orçamentárias.
Em uma nota publicada no início do mês, a SAF negou que as medidas aprovadas em julho tivessem como finalidade expulsar a Eagle do controle do Botafogo.
“Para fins de esclarecimento, destacamos que as ações societárias tomadas até o momento consistem apenas em autorizações legais e que não há, no presente momento, qualquer plano que vise à diluição da participação acionária do nosso sócio majoritário. Inclusive, tais medidas seriam necessárias para possibilitar que o próprio acionista majoritário realize novos investimentos”, diz o texto.
Guerra de narrativas
A disputa entre o empresário norte-americano e seus sócios na Eagle colocou o Botafogo em rota de colisão com o Lyon.
Inicialmente, na época do quase rebaixamento do clube francês, o jornal L’Équipe divulgou a notícia de que a equipe francesa usou recursos para contratar jogadores que nunca atuaram na Ligue 1. Eles teriam sido repassados diretamente ao time brasileiro.
O Lyon chegou a contabilizar 50 atletas na temporada 2024/2025, embora o elenco possuísse em torno de 30 jogadores de fato.
O Botafogo resolveu, então, contra-atacar com as mesmas armas, cobrando do Lyon uma dívida de € 128 milhões.
Segundo uma notícia originalmente publicada pelo portal GE, a SAF botafoguense alega ter feito uma série de repasses ao clube francês desde 2023, de modo a auxiliá-lo a se adequar às regras de Fair Play Financeiro e seguir na Ligue 1.
A quantia envolve ainda as transferências dos jogadores Thiago Almada e Igor Jesus, acertadas com o Lyon, mas que não se efetivaram, pois o clube estava sujeito a um “transfer ban”.
As operações financeiras envolvendo o Lyon são mencionadas no balanço do Botafogo referente a 2024.
“A SAF Botafogo negociou os direitos econômicos futuros de dois de seus jogadores com o Olympique Lyonnais SASU, em uma operação avaliada em € 56,4 milhões. Parte desse montante foi recebida ao longo do exercício de 2024, estando o saldo remanescente registrado no ativo como contas a receber, com previsão de recebimento em períodos subsequentes”, diz o documento.
Áudio de Montenegro
Um áudio do ex-presidente do clube Carlos Augusto Montenegro, que veio a público no começo deste mês, serviu para ampliar o clima de incerteza envolvendo a SAF do Botafogo.
“O Textor, agora, está tentando sair fora da Eagle. Na verdade, já saiu no papel, parece que é isso. Mas está tentando ficar com o Botafogo. Só que ele precisa de dinheiro. Ele, pessoa física, não tem dinheiro e está tentando falar com outras pessoas para ajudar a comprar. A Ares não quer negociar muito com ele, mesmo ele tendo dinheiro. Deve ter feito algumas e outras coisas não muito interessantes”, disse o ex-mandatário botafoguense.
Em sua fala, o ex-presidente ainda comentou sobre a disputa de Textor com a Ares Management pelo controle da Eagle e dos clubes de futebol.
“Essa Ares é o segundo maior fundo de investimento dos Estados Unidos. Não tem esse negócio de história, de 100 anos de Botafogo, não. O que tem agora é dinheiro em cima da mesa. É uma briga entre os sócios que compraram o Botafogo e ficaram com 90% da SAF. Teoricamente, a gente não tem nada a ver com essa briga, mas é o que está acontecendo”, afirmou Montenegro.
Atualmente, o Botafogo disputa as oitavas de final da Copa Libertadores. No jogo de ida, realizado nesta quinta-feira (14), no Rio de Janeiro (RJ), o clube levou a melhor sobre a LDU (EQU), vencendo por 1 a 0.
Na Copa do Brasil, o time disputará as quartas de final diante do rival Vasco. E, por último, na Série A do Brasileirão, a equipe ocupa atualmente a quinta posição, com 29 pontos, 11 a menos que o líder Flamengo.
No país do futebol, onde troféus e vitórias muitas vezes acabam representando o principal critério de verdade, John Textor ainda está com prestígio em alta entre torcedores e dirigentes alvinegros. Resta saber até quando esse modelo “destemido” de gestão conseguirá se sustentar.