A Caixa Econômica Federal, além do monopólio das loterias do Brasil, também poderá explorar as apostas esportivas a partir da publicação da lei 14.455/22, o que já causa reação entre especialistas e operadores privados da área.
A nova lei, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no último dia 21 de setembro, autoriza o Poder Executivo a criar duas novas modalidades de loteria. Os recursos arrecadados por essas novas loterias, deduzidos impostos e premiação, serão destinados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) e à Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur). Os prêmios não reivindicados também serão destinados a essas áreas.
Apostas esportivas
Segundo o texto da nova lei, de autoria do deputado Capitão Wagner (União Brasil-CE), os operadores dessas novas loterias poderão oferecer a modalidade de prognósticos numéricos, esportivos e apostas de cota fixa.
O primeiro caso é aquela loteria com sorteio de números, no estilo da Mega-Sena. Já a modalidade de prognósticos esportivos depende de resultados de jogos, como no caso da Loteca. A chamada aposta de cota fixa, por sua vez, na qual a premiação é divulgada antecipadamente ao cliente, são as apostas esportivas.
Lei ilegal?
Os termos da lei que criou as novas loterias podem ser passíveis de questionamento se efetivamente obedecem a Constituição Federal.
“Entre as pessoas especializadas na área de loterias, é unânime a visão de que essa lei é inconstitucional por vício de iniciativa”, definiu Udo Seckelmann, advogado especialista em apostas, em entrevista à Máquina do Esporte.
“Segundo a Constituição, quem deveria instituir algo que disponha sobre a Lei do Serviço Público é o chefe do executivo [presidente]. A iniciativa não poderia vir do [poder] legislativo”, explicou o advogado.
Para derrubar a lei, porém, seria necessária uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), considerado o guardião da Constituição. O exame da questão poderia ser pedido apenas por setores específicos do poder público ou entidades privadas.
De acordo com a Constituição, só podem fazer esse pedido o presidente, o Senado, a Câmara dos Deputados, a Assembleia Legislativa ou Câmara Legislativa (no caso do DF), um governador de estado ou do Distrito Federal, o procurador-geral da República, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), algum partido político com representação no Congresso Nacional ou uma entidade de classe de âmbito nacional.
“É uma lei muito simples, que praticamente joga no colo da Caixa Econômica Federal esses três produtos, com parte da arrecadação destinada à FNS e à Embratur. A lei não dispõe de regras de concessão desse serviço para iniciativa privada”, explicou Seckelmann.
Concorrência desleal
Segundo a lei, a exploração de apostas esportivas poderá ser oferecida pela Caixa de maneira on-line ou física. Ou seja, em locais onde haja pouca familiaridade da população com sites de apostas, o banco estatal poderá oferecer o produto em sua rede lotérica, cuja capilaridade pelo Brasil inviabilizaria a concorrência.
“Como uma empresa privada vai entrar em um mercado contra um operador com rede de distribuição deste tamanho?”, questionou o advogado Luiz Felipe Maia, também especialista em apostas esportivas.
“A Caixa não paga ISS [Imposto Sobre Serviços]. O operador privado paga. A lei gera mais confusão e pode criar distorções concorrenciais. Todo mundo foi pego de surpresa. Ninguém entendeu qual é o objetivo do legislador com isso”, completou Maia.
Para Seckelmann, porém, mesmo que a nova loteria não seja derrubada por ação de inconstitucionalidade e a Caixa passe a explorar apostas esportivas, o setor não deixará de se interessar pelo mercado brasileiro.
“Nenhum operador chegou para mim com preocupação em relação a essa nova lei. Eventualmente, isso vai ser considerado inconstitucional. Mas, se no futuro a Caixa instituir esse produto, não acredito que afastaria os operadores do Brasil”, analisou o advogado.
Propósito no passado
A lei foi proposta em 2020 para beneficiar dois setores muito atingidos pela pandemia de Covid-19. A saúde necessitava urgentemente de mais verba para enfrentar a crise sanitária e tratar os doentes, enquanto o turismo sofreu com a queda brusca de viagens e a obrigatoriedade de se fazer quarentena e evitar deslocamentos para combater a propagação do vírus.
No entanto, a lei só entrou em vigor agora, no momento em que esses efeitos mais agudos da pandemia já foram equacionados. O Brasil já conta com 81% da população vacinada, segundo levantamento do Our World in Data, e a média móvel de mortes para a doença é de 36 pessoas. Já o turismo experimenta momento de retomada.
Imbróglio da lei
A lei original abria a possibilidade de que o governo estabelecesse regras para a concessão dessas loterias à iniciativa privada. No entanto, Bolsonaro vetou o artigo 3º, que dava prazo de 30 dias para o Ministério da Economia regulamentar a lei sob alegação de interferência entre os poderes. Agora, o Congresso terá que examinar esse veto.
Por outro lado, desde 2018, o Brasil já permite a operação das plataformas de apostas esportivas. A lei 13.756, sancionada pelo então presidente Michel Temer, estabeleceu que o Ministério da Economia tinha prazo até dezembro de 2022 para regulamentar o setor, o que ainda não foi feito.
Ou seja, o Brasil vive no buraco negro de a atividade ser permitida, mas sem existir regras para ser exercida. Todos os sites de apostas que atuam no país operam a partir de suas sedes no exterior, visto que não podem se constituir juridicamente no Brasil.
Sem regulamentação, o governo não consegue cobrar impostos do setor, que também não gera empregos ao país. O consumidor, por sua vez, convive com a incerteza do pagamento de uma aposta vencedora. Não há como acionar órgãos como o Procon para valer os direitos, uma vez que as empresas atuam fora do país.