Lançada no ano passado, a “Camisa que Conduz” é o uniforme número 3 criado pela New Balance para o São Paulo.
Ela foi inspirada nos sinalizadores usados pelos são-paulinos para recepcionar o ônibus do time em dias de jogos, nas imediações do Morumbis, e seu nome é uma alusão direta à expressão “Torcida que Conduz”, usada para se referir aos fãs do Tricolor. Indiretamente, ela acaba de se tornar pivô de um escândalo que abala o mundo publicitário.
A “Camisa que Conduz” contou com uma campanha de lançamento, que ficou a encargo da agência de publicidade LePub, parte do conglomerado Publicis. Com sede na França, o grupo é uma das três maiores empresas de publicidade do mundo e conta com subsidiárias em diversos países do mundo, incluindo o Brasil.
A campanha consistiu em um e-commerce ambulante, instalado no interior do ônibus que levou o elenco do São Paulo do Centro de Treinamento (CT) da Barra Funda até o Morumbis, para o jogo diante do Atlético-GO, realizado em 11 de agosto de 2024 e válido pelo Brasileirão da Série A.
O “case de sucesso” foi inscrito pela LePub no Cannes Lions Festival of Creativity de 2025 e acabou levando o Leão de Bronze no evento, realizado neste mês.
Ao todo, a LePub Brasil garfou seis prêmios no festival, sendo um ouro, uma prata e quatro bronzes. O da campanha da New Balance, intitulada “Followers Store” (algo como “Loja de Seguidores”, numa tradução livre), veio na categoria “Experiência e Ativação de Marca”.
O Publicis Groupe Brasil celebrou a conquista de sua empresa, em post publicado na semana passada, em sua conta oficial no Instagram.
Porém, essa glória mostrou-se um tanto quanto efêmera. Um texto publicado pelo jornalista esportivo Demétrio Vecchioli em outra rede, o LinkedIn, mostra que a LePub utilizou uma série de informações falsas no case premiado pelo Cannes Lions 2025.
O que a LePub contou aos jurados de Cannes?
O case inscrito pela agência LePub trazia uma ideia aparentemente espetacular e que teria trazido resultados incríveis para a New Balance e o São Paulo.
A premissa adotada na campanha de lançamento da “Camisa que Conduz” era de que torcedores mais fiéis, de um modo geral, não conseguiriam comprar os uniformes exclusivos, pelo fato de que os produtos esgotariam rapidamente.
A agência então buscou uma solução para deixar a nova camisa disponível apenas para torcedores que seguissem fisicamente o clube. Ou seja, aqueles que acompanhassem de perto o trajeto do ônibus que levaria os atletas do São Paulo ao estádio, para o confronto diante do Atlético-GO, em 11 de agosto de 2024.
A empresa de tecnologia OneFan foi encarregada e desenvolver um sistema de geolocalização capaz de alertar os usuários do aplicativo do São Paulo, que estivessem próximos ao local por onde o ônibus passaria.
Torcedores com o app, em um raio de até três quilômetros, teriam a chance de adquirir a “Camisa que Conduz” na pré-venda. O produto começaria a ser comercializado de fato apenas dois dias depois.
Segundo o case apresentado pela LePub, a ação teria resultado na venda de 45 mil unidades da “Camisa que Conduz”. O produto teria se esgotado depois de o ônibus haver percorrido, supostamente, 25 quilômetros.

Informações falsas e inconsistências
No texto publicado no LinkedIn, Vecchioli aponta para uma série de inconsistências e informações falsas utilizadas pela LePub no case premiado em Cannes.
O trajeto entre o CT do São Paulo e o Morumbis, por exemplo, é de 22 quilômetros, menor do que os 25 indicados no material de apresentação produzido pela agência. Mas, conforme observa o jornalista, esse dado nem é o mais problemático.
De acordo com o jornalista, o São Paulo divulgou, na verdade, que quem estivesse por perto dos locais por onde o ônibus passaria “teria um ‘spoiler’ da camisa e um benefício sócio-torcedor exclusivo (quem se tornasse ganharia um 13º mês)”.
Vecchioli ainda reproduziu imagem publicada pelo perfil denominado Espaço Tricolor, no X (antigo Twitter), que traz o print da notificação recebida pelos torcedores que recepcionaram o Tricolor, no trajeto rumo ao estádio. “Vejam: ‘detalhes’ da camisa, não a opção de compra”, afirma o profissional.
O jornalista também resgatou trecho de um release divulgado à época pela assessoria da New Balance, com um balanço da promoção. O comunicado não citou pré-venda, muito menos 45 mil camisas comercializadas. O texto da marca afirmava que 10 mil torcedores teriam sido impactados pelo “spoiler”.
O profissional ainda observa que a “Camisa que Conduz”, referida no case como uma peça exclusiva, hoje pode ser adquirida por qualquer interessado, na SAO Store (loja oficial do clube) ou no site da New Balance.
“Ué, não era ‘somente fãs dentro do perímetro’ os aptos a comprá-la?”, questiona Vecchioli, no post. Procurada por ele, a LePub justificou-se, dizendo que o texto usado no case seria vago, mas não incorreto.
“Somente quem estava no perímetro podia comprá-la naquele dia. Em outro momento qualquer pessoa poderia comprá-la”, explicou a agência ao jornalista.
O profissional observa no post que o público do confronto entre São Paulo e Atlético-GO, realizado às 11h, em um domingo, foi de 46,6 mil pessoas.
“Tirando a torcida rival, é como se todo torcedor do São Paulo que foi ao jogo tivesse comprado a camisa. De novo perguntei à LePub pra não escrever besteira. Aqui eles admitiram que erraram mesmo. Mas que não fez diferença porque Cannes só premiou a ideia, não o sucesso de vendas. Fica o registro. O case diz que isso tornou a loja online a terceira maior do Brasil”, relata o jornalista.
Repercussão falsa
O case apresentado pela LePub em Cannes traz a suposta repercussão que a campanha teria alcançando em veículos jornalísticos e nas redes sociais.
Entre eles, da Fox Sports, que deixou de operar no país em 2022 e jamais poderia ter noticiado os resultados de uma ação realizada em agosto do ano passado.
O jornalista também procurou pessoas que que aparecem em uma série de vídeos de reels, mostrados no case.
“Caio Cascino [uma das pessoas mostradas no material da LePub] me disse que não é ele no vídeo que aparece entre os reels que ‘comprovam’ a repercussão. Ele também garantiu que não disse o que aparece legendado sobre a tela ‘dele’. Perguntei pra agência sobre isso e ela me explicou que o áudio e a legenda não têm necessariamente a ver com o reel”, relata Vecchioli.
No material de apresentação do case, no instante em que Caio é mostrado, uma voz masculina profere a seguinte frase: “Não dá pra conseguir ela do sofá, não”.
De acordo com o jornalista, no áudio original do vídeo, o youtuber apenas agradece ter recebido a camisa.
“Alex Tseng, no vídeo que segue disponível no Instagram dele, faz o mesmo. Nada sobre a fantástica campanha de pré-venda. O único vídeo que tem a pessoa falando é de um tal Augusto, cujo perfil, com 954 seguidores, é fechado. A Carolina, essa sim uma influenciadora de 161 mil seguidores, me explicou que o vídeo dela é real, uma campanha que ela fez para New Balance, mas que não lembra o que dizia nele (o case não cita)”, afirma Vecchioli.
Problema recorrente
Os questionamentos envolvendo a premiação da LePub eclodem na mesma semana em que vieram a público as notícias sobre manipulação e inconsistências de informação no case apresentado pela brasileira de publicidade DM9 no Cannes Lions 2025.
“Consumo Eficiente de Energia”, criado pela agência para Consul, marca de eletrodomésticos da Whirlpool, venceu o Grand Prix de Creative Data no festival.
Nesta semana, porém, foi revelado que material apresentado pela agência aos jurados trazia vídeos manipulados com inteligência artificial, que se passavam por matérias jornalísticas reais, e dados fora de contexto.
O episódio resultou no desligamento do executivo Icaro Doria, que assumiu total responsabilidade pelo ocorrido.
O que dizem os envolvidos
A Máquina do Esporte entrou em contato com o Publicis Group Brasil. A empresa informou que está “apurando as informações sobre os questionamentos levantados” e não irá se “pronunciar sobre o assunto neste momento”.
Em todo caso, ela adiantou que o “case é de total responsabilidade da LePub SP, não da New Balance nem do São Paulo Futebol Clube”.
A marca esportiva emitiu nota referente ao ocorrido. “A New Balance informa que todos os materiais relativos à inscrição foram feitos pela LePub, agência responsável pela ação, sem ciência ou aprovação da marca. Assim, questionamentos sobre este case devem ser direcionados à agência”, diz o texto.
Procurado, o São Paulo alegou que o “caso deve ser tratado com a New Balance”. A organização do Cannes Lions foi contactada via e-mail, mas não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem.