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Cartolas que perseguiram Vladimir Herzog ficaram impunes por colaboração com Ditadura

Wadih Helu, dirigente do Corinthians, e José Maria Marín, que virou presidente da CBF, instigaram repressão a prender jornalista, em 1975

Da esquerda para a direita: Wadih Helu, Vladimir Herzog e José Maria Marin - Reprodução / al.sp.gov.br; vladimirherzog.org; cbf.com.br

O ano de 2025 marca as cinco décadas do assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela Ditadura Civil-Militar, que comandou o Brasil de 1964 a 1985.

A data exata da morte do diretor de telejornalismo da TV Cultura e professor de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) foi em 25 de outubro de 1975. Nos últimos dias, uma série de eventos e ações na mídia têm procurado resgatar a memória desse episódio.

Muito tem sido falado a respeito da participação de políticos e militares nesse crime. Se olharmos com mais cuidado, porém, encontraremos as impressões digitais do futebol brasileiro nesse homicídio perpetrado pelo regime autoritário.

A perseguição a Vlado é resultado direto da pressão feita por cartolas-políticos, que, nas décadas posteriores ao assassinato do jornalista, continuaram a exercer forte influência nos rumos do esporte mais popular do Brasil.

Dois personagens se destacam nessa trama: Wadih Helu, que presidiu o Corinthians de 1961 a 1971 (período que coincidiu com uma das maiores secas de títulos da história do clube), e José Maria Marin, que viria a se tornar presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e liderar a organização da Copa do Mundo no país, em 2014.

Ambos passaram anos e anos sendo adulados pelo restante da cartolagem e nunca foram sequer questionados por sua atuação nesse episódio, que terminou com a morte de um homem.

Helu deixou este plano existencial em 2011, após cumprir nove mandatos seguidos como deputado estadual, com direito a velório solene realizado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).

Wadih Helu em 1989, quando participou da Assembleia Constituinte de São Paulo – Reprodução / al.sp.gov.br

Já Marin sempre orbitou o poder, chegando a ocupar o cargos como de governador biônico de São Paulo, de 1982 a 1983 (Paulo Maluf, o titular, havia deixado o mandato para se candidatar a uma vaga na Câmara Federal), e de presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF), de 1982 a 1988, e da CBF, de 2012 a 2015.

Após o fim do mandato na CBF, acabou sendo preso e condenado por sua participação no “Escândalo do Fifagate”, foi banido do futebol e morreu em 2023, aos 93 anos de idade, internado no Hospital Sírio-Libanês, um dos mais caros do país.

À época, a CBF chegou a emitir nota lamentando a morte de seu ex-dirigente máximo, mas sem detalhar a natureza exata de seus feitos.

“A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) lamenta o falecimento de José Maria Marin, ocorrido na madrugada deste domingo (20), em São Paulo, aos 93 anos. Ele estava internado no hospital Sírio-Libanês e será velado nesta tarde, na capital paulista. Nascido em 6 de maio de 1932, José Maria Marin foi presidente da CBF entre 12 de março de 2012 e 16 de abril de 2015”, disse o texto da entidade.

Paulo Egydio Martins

Paulo Egydio Martins é outro personagem central nessa história. Engenheiro de formação, ele tinha 92 anos quando faleceu, em 12 de fevereiro de 2021.

Em suas últimas décadas de vida, ele se mantinha afastado no núcleo-duro da política paulista. Nos anos 1970, porém, Paulo Egydio chegou a ser um dos homens mais influentes do país.

De 1975 a 1979, ele foi governador biônico de São Paulo pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido oficial do regime.

Durante seu mandato, embora o Brasil já vivesse a chamada “abertura lenta e gradual” arquitetada pelo ditador Ernesto Geisel, o estado de São Paulo foi cenário de alguns dos atos mais truculentos praticados pela repressão.

Além da morte de Herzog, foi na gestão de Paulo Egydio que ocorreram a tortura e o assassinato do operário Manoel Fiel Filho nos porões do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em 1976, e a invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), em 1977.

Em outubro daquele ano, o Corinthians, time do coração de Paulo Egydio, levou a melhor sobre a Ponte Preta na decisão do Paulistão, encerrando um jejum de 23 anos sem títulos.

Em 2021, quando o torcedor “ilustre” morreu, o Timão emitiu nota lamentando o fato, descrevendo-o como “corintiano apaixonado” e “homem de inspiração democrática”, que teria se notabilizado “por suas contribuições à reabertura politica do Brasil”.

“Além disso, Paulo Egydio foi um dos torcedores ilustres que pavimentaram o caminho alvinegro rumo à grandeza, merecendo a justa homenagem de batizar com seu nome o miniginásio do Parque São Jorge”, diz o texto.

Nota de pesar emitida pelo Corinthians, que descreve Paulo Egydio como homem de “inspiração democrática” – Reprodução / corinthians.com.br

Como cartolas perseguiram Herzog

Nascido na antiga Iugoslávia, em 1937, Vladimir Herzog tinha ascendência judaica e naturalizou-se brasileiro. Na década de 1970, ele comandava o departamento de telejornalismo da TV Cultura, que em 1969, havia sido adquirida pela Fundação Padre Anchieta, do Governo de São Paulo (anteriormente o canal pertencia ao Diários Associados, da TV Tupi).

Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que havia sido colocado na ilegalidade após o Golpe de 1964, Vlado nunca chegou a se envolver na resistência armada ou quaisquer outras atividades clandestinas.

O “crime” do jornalista (na visão de algozes) consistia em seguir os preceitos da profissão que ele abraçara: ou seja, mostrar ao público aquilo que os poderosos tentavam esconder.

Durante sua gestão, o jornalismo da TV Cultura passou a exibir diversas reportagens em tom crítico às administrações da cidade de São Paulo e do estado. Entre elas, a epidemia de meningite que assolava a capital paulista, mas que era ignorada pelas autoridades.

Wadih Helu e José Maria Marin, que cumpriam mandatos de deputados estaduais, usaram a tribuna da Alesp para instigar a perseguição a Vlado.

A participação dos dois cartolas-políticos foi resgatada em “Caso Herzog: A foto e a farsa”, podcast original do Instituto Vladimir Herzog, produzido produzido pela NAV Reportagens, em parceria com o Instituto Conhecimento Liberta (ICL) e apresentado pelo jornalista Camilo Vannuchi. A produção recuperou áudios originais dos discursos de Helu e Marin, na Alesp.

“Nós temos lido a denúncia da ‘comunização’ do Canal 2 [Cultura], da infiltração dos elementos subversivos, dos elementos de esquerda, no Canal 2”, declarou Helu.

“É preciso mais do que nunca uma providência, a fim de que a tranquilidade volte a reinar não só nesta Casa, mas principalmente nos lares paulistanos”, clamou Marin. Duas semanas depois de proferir esse discurso (16 dias, para ser exato), o futuro presidente da CBF teve seus desejos atendidos pelos agentes da repressão.

Em 24 de outubro de 1975, Vlado foi convocado por agentes do 2º Exército, com sede em São Paulo, para prestar depoimento acerca de suas ligações com o PCB.

Ele compareceu à sede do DOI-Codi por livre e espontânea vontade. No dia seguinte, o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de inteligência da Ditadura, divulgou um comunicado informando que o jornalista teria se suicidado nas dependências do órgão.

A imagem registrada pelo fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, do Instituto de Criminalística da Academia de Polícia Civil de São Paulo, tornou-se o retrato da violência política daquele período, além de escancarar uma farsa montada pela repressão, a fim de acobertar os crimes do regime autoritário.

“O que me chamou mais a atenção foi que o Herzog estava com os dois pés no chão”, diria Vieira, numa entrevista concedida ao jornal O Globo, em 2013.

A foto chocante de Vlado, numa cena que simulava morte por enforcamento, criou uma onda de indignação. Estudantes, jornalistas e militantes passaram a contestar a a narrativa dos órgãos de repressão.

Durante o ato inter-religioso celebrado na Catedral da Sé pelo cardeal arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns com a participação do rabino Henry Sobel, a versão oficial, que tratava a morte como suposto suicídio, foi desmentida publicamente diante de milhares de pessoas que assistiam à cerimônia.

Aquele seria o primeiro grande ato de resistência à Ditadura, desde a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que proibiu manifestações populares no país.

O detalhe é que o governador Paulo Egydio, apesar de suas “inspirações democráticas”, chegou a procurar Dom Paulo, tentando convencer o arcebispo a desistir do ato.

Um dos argumentos usados pelo governo foi enviar à Praça da Sé e imediações cerca de 500 policiais armados, que estavam orientados a disparar caso algum dos presentes à cerimônia gritasse alguma palavra de ordem contra a Ditadura.

O Coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública nomeado por Paulo Egydio, ainda operou para boicotar a cerimônia, instalando bloqueios policiais em diversas vias da capital paulista e barrando acesso de ônibus e veículos particulares à região da Praça da Sé.

As ações das forças de segurança desse governo que tanto contribuiu para a “reabertura politica do Brasil” de nada adiantaram. O ato inter-religioso acabou reunindo milhares de pessoas, dentro e fora da catedral, ajudando a escancarar ao mundo toda a brutalidade do regime.

Algozes seguiram influenciando os rumos do futebol

Após a morte de Herzog, o Brasil presenciaria ainda outros atos de violência praticados pela Ditadura. Wadih Helu e José Maria Marin jamais foram questionados de maneira categórica, em vida, por sua participação no episódio que resultou no assassinado do jornalista.

Ambos seguiram ditando os rumos não apenas da política, como também do próprio futebol brasileiro.

Wadih Helu havia presidido o Corinthians de 1961 a 1971, em cinco mandatos consecutivos. Sua gestão ficou marcada pela seca de títulos (exceto pelo Rio-São Paulo de 1966, troféu dividido com Vasco, Botafogo e Santos, em um torneio que não foi sequer concluído, por conta da Copa do Mundo que ocorreu naquele ano).

Se não empilhou troféus, soube usar a projeção oferecida pelo clube de maior torcida de São Paulo para construir carreira sólida na política. Elegeu-se deputado estadual pela primeira vez em 1967. Repetiu o feito em outras oito eleições seguidas, até deixar o cargo em 2003.

Na fase final de sua gestão no Corinthians, o dirigente ficou marcado pelo embate com os Gaviões da Fiel, que tentavam se organizar desde 1965, mas só conseguiram constituir-se como uma agremiação em 1969.

A torcida fazia oposição escancarada ao cartola-deputado, que passou a ser considerado “persona non grata” pelos Gaviões.

Após Helu ser sobrepujado pelo adversário Vicente Matheus, na eleição do clube em 1971, o próprio Corinthians mudaria de rumos, culminando, na década de 1980, no movimento chamado “Democracia Corinthiana”, liderado por jogadores como Wladimir, Sócrates e Casagrande e que pedia a volta das eleições diretas no Brasil.

A partir de 1993, com a derrota do grupo de Vicente Matheus para Alberto Dualib, Wadih Helu voltou a ser uma voz influente dentro do Parque São Jorge, assim permanecendo até 2007, quando o mandato do aliado chegou ao fim.

Marin, por sua vez, começou a pavimentar seu caminho como cartola ainda em 1982, na condição de presidente da FPF, atividade que exercia ao mesmo tempo em que ocupava o Governo de São Paulo.

Na juventude, ele chegou a ser atleta profissional do São Paulo, clube do qual era sócio. Não chegou a brilhar no Tricolor, mas atuou por equipes menores como São Bento, Marília e Jabaquara. Em 2012, ele seria recebido com pompa e gala pelo então presidente Juvenal Juvêncio, numa visita ao Estádio do Morumbi (atual Morumbis).

“Eu vim visitar o São Paulo Futebol Clube, que eu considero a minha família também. Eu passei a minha juventude no São Paulo Futebol Clube. Foi no São Paulo que eu recebi os primeiros conselhos, do saudoso Vicente Feola, do Paulo Machado de Carvalho e do saudoso são-paulino Waldemar Albien, que era presidente do Sindicato de Hotéis e Similares do Estado de São Paulo. Eles me aconselharam que procurasse estudar”, disse Marin, em entrevista ao site oficial do clube.

José Maria Marin visitou o São Paulo, em 2012, acompanhado do então presidente Juvenal Juvêncio – Rubens Chiri / São Paulo

Em 1986, o então presidente da FPF foi escolhido para chefiar a delegação da seleção brasileira, na Copa do Mundo disputada no México.

Mais tarde, Marin iria se aproximar do grupo de Ricardo Teixeira, que passou a presidir a CBF em 1989.

Acabou garfando o cargo de vice-presidente, posto que ocupava em 2012, quando Teixeira resolveu renunciar à presidência, alegando problemas de saúde (à época, ele era alvo de uma série de denúncias noticiadas pela TV Record).

Dessa forma, Marin ganhou o direito de comandar o Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2014, que ocorreria no Brasil.

Dois meses antes de assumir como presidente da CBF, Marin notabilizou-se por embolsar a medalha que seria entregue ao jogador Matheus, do Corinthians, pela conquista da Copa São Paulo de Futebol Júnior de 2012. O ato teria saído impune, não fosse por um cinegrafista da Band, que flagrou o sumiço do objeto.

Um detalhe curioso é que Marin sempre é lembrado por esse caso da medalha ou por sua prisão em decorrência no Fifagate. Por outro lado, sua participação em um dos períodos mais sombrios da história brasileira é um fato que só agora começa a ficar em evidência. O que não era sem tempo.