CBF redobra esforço para desvincular camisa da seleção brasileira de atos antidemocráticos

Considerada um dos principais símbolos do país, a camisa da seleção brasileira converteu-se, nos últimos anos, em motivo de dor de cabeça para a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O problema reside no uso político que tem sido feito do uniforme, consagrado dentro de campo por inúmeras gerações de craques, que vão de Pelé, Didi e Garrincha a Neymar, Richarlison e Casemiro, passando por Rivellino, Tostão, Gerson, Zico, Sócrates, Romário, Careca, Bebeto, Ronaldo, Rivaldo e tantos outros.

Fora dos gramados, a camisa tem sido adotada por grupos de extrema-direita, que não aceitam o resultado expresso pelos eleitores brasileiros nas urnas no segundo turno da eleição do ano passado. Contrariados com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apoiadores do hoje ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) passaram a contestar o resultado, com direito a bloqueios em rodovias e a montagem de acampamentos diante de quartéis das Forças Armadas, onde clamam por golpe militar.

Neste domingo (8), cerca de 4 mil desses militantes mais radicais estiveram em Brasília (DF), onde promoveram atos classificados como terroristas pelas autoridades e que incluíram depredação e furto de móveis e obras de arte do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).

O detalhe é que os envolvidos nos atos de terrorismo e vandalismo, em sua maioria, utilizavam camisas amarelas da seleção, como forma de demonstrar aquilo que denominam de “patriotismo”. Em vídeos que circulam pelas redes, mostrando tanto as depredações quanto as detenções realizadas posteriormente (na manhã desta segunda-feira (9), mais de 1,2 mil mandados de prisão haviam sido expedidos pela Justiça), é possível ver inúmeras pessoas utilizando o uniforme canarinho, com o emblema da CBF.

A situação se tornou para lá de problemática para a entidade, na medida em que os acontecimentos ganharam repercussão internacional, ocasionando pronta indignação ao redor do mundo.

Repúdio

Não é de hoje que a CBF vem tentando se livrar do uso político feito em cima da camisa da seleção. Nunca, porém, a entidade havia se posicionado de maneira tão clara em relação ao tema. Em um post nas redes sociais realizado nesta segunda-feira (9), a confederação referiu-se aos atos como “antidemocráticos e de vandalismo”. A entidade afirmou repudiar “veementemente” o uso da camisa da seleção nesse tipo de contexto.

“A camisa da seleção brasileira é um símbolo da alegria do nosso povo. É para torcer, vibrar e amar o país. A CBF é uma entidade apartidária e democrática. Estimulamos que a camisa seja usada para unir, e não para separar os brasileiros”, afirmou a entidade, na mesma thread.

Além da CBF, apenas o Bahia, entre os grandes clubes brasileiros, posicionou-se a respeito dos ataques feitos aos três poderes, com um post em defesa da democracia.

Se os clubes optaram por não mexer nesse vespeiro político, integrantes de coletivos antifascistas de torcedores de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos marcaram presença no ato realizado na tarde desta segunda-feira (9), nas imediações do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na capital paulista. O protesto contou com palavras de ordem em defesa da democracia e também pediu punição para os envolvidos nos ataques aos três poderes.

Polêmica vem de longe

A controvérsia envolvendo o uso político do uniforme verde e amarelo da seleção já estende há alguns anos. Nos anos 1980, durante a campanhas das Diretas Já, ela já havia sido utilizada em um contexto de defesa da democracia e contra a ditadura militar, que caminhava para seu fim.

Mais tarde, a partir de julho de 2013, a camisa voltou a ser usada em grandes manifestações que se iniciaram a partir de protestos contra o reajuste da tarifa de transporte coletivo em capitais brasileiras. Naquele contexto, o verde e amarelo da seleção passaram a ser adotados pelos militantes como uma forma de se desvincularem de partidos políticos.

No ano seguinte, com a eleição fortemente polarizada (ainda entre PT e PSDB), apoiadores do tucano Aécio Neves foram às urnas usando camisas da seleção, em contraposição ao vermelho do partido de Dilma Rousseff.

Impeachment

Em 2015, eles voltaram às ruas usando o uniforme canarinho, pedindo o impeachment de Dilma, que acabou deixando o cargo em 2016. Depois, dois anos mais tarde, a camisa da seleção se transformou em protagonista de mais uma disputa política, desta vez sob o embalo de um discurso com forte apelo ao patriotismo, feito pelo capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro (à época, no PSL), vencedor daquela eleição.

Naquela altura dos acontecimentos, o verde e amarelo da camisa da seleção deixavam de ser uma alternativa para quem desejava se diferenciar do PT e passavam a servir de esteio para um discurso de direita, cada vez mais radical.

Copa fora de época e cicatrizes políticas expostas

Em nenhuma dessas ocasiões, porém, a CBF se manifestou, mesmo em se tratando de ano de Copa do Mundo. Em 2022, contudo, a situação mudou de figura. Com o governo Bolsonaro fortemente desgastado junto à opinião pública e o crescimento de seu principal adversário, Lula, a camisa amarela da seleção passou a sofrer os efeitos colaterais de seu uso político.

Para piorar, a mudança no calendário da Copa do Mundo acabou por deixar mais evidentes as feridas abertas pelo processo eleitoral. Em anos anteriores, o evento esportivo ocorreu na metade do ano, atraindo completamente a atenção do país e adiando o início das discussões políticas para depois de agosto.

Só que, em 2022, a Copa iniciou-se apenas algumas semanas após o segundo turno, que teve a campanha mais acirrada das últimas décadas, sendo decidida por menos de dois pontos percentuais. Antes do início do Mundial do Catar, a CBF tinha ciência da rejeição que parte dos brasileiros passou a nutrir pela camisa amarela da seleção, derrotada nas urnas.

Campanha para reabilitar a amarelinha

Tanto que, a partir de novembro, dias depois de concluída a eleição, a entidade passou a veicular uma campanha publicitária com o objetivo de exaltar o uniforme canarinho. O vídeo foi exibido antes da divulgação da lista com os 26 convocados pelo então técnico Tite e pode ser conferido a partir dos 9 minutos e 40 segundos da transmissão abaixo. Essa tentativa de ressignificar a camisa contou com o refrão de uma conhecida música de Lulu Santos: “Ela me faz tão bem…”.

A luta para reabilitar a amarelinha contou com o reforço do narrador Galvão Bueno, da Globo, que, no dia da partida de estreia do Brasil diante da Sérvia, afirmou: “Essa camisa amarela é nossa, é minha, é sua, é do Brasil inteiro, é de todo mundo”.

Na final da competição, disputada em 18 de dezembro, ao ser homenageado em sua despedida como narrador da emissora, Galvão relembrou essa frase, em uma crítica clara ao uso político do uniforme da seleção.

De redentora a cancelada

O verde e o amarelo nem sempre foram as cores da seleção. No Campeonato Sul-Americano de 1916, o Brasil até usou um uniforme com listras nesses tons. Porém, havia forte resistência das autoridades do país, à época, em permitir que as cores predominantes da bandeira nacional fossem usadas em competições esportivas.

Assim, a seleção adotou a vestimenta branca, usada até a Copa de 1950. A derrota diante do Uruguai, porém, estigmatizou para sempre o antigo uniforme, que passou a sofrer forte rejeição entre os torcedores, agravada por uma campanha deflagrada por veículos de imprensa que defendiam a troca das cores da camisa do “escrete” nacional.

Um concurso promovido em 1953 pelo jornal Correio da Manhã, em parceria com a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), antecessora da CBF), definiu o novo modelo para o uniforme da seleção. O criador da camisa amarela, que hoje também enfrenta o risco de ser cancelada por motivos políticos, foi o gaúcho Aldyr Garcia Schlee, falecido em 2018.

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