Com dinheiro das SAFs, futebol brasileiro vive inflação na janela de transferências

“Estão deixando a gente sonhar”. Esta frase foi proferida por Ronaldinho Gaúcho, em 2011, quando seu clube na época, o Flamengo, conseguiu engatar uma série de vitórias na Série A do Campeonato Brasileiro e passou a ameaçar os líderes Corinthians (que acabou sendo campeão) e Vasco (sim, até então o Gigante da Colina disputava títulos na primeira divisão).

As palavras do jogador receberam muitos reúsos ao longo dos anos. E servem para descrever muito bem o sentimento que arrebata alguns torcedores nesta janela de transferências, uma das mais inflacionadas dos últimos tempos.

Desde esse momento poético do craque, muita coisa mudou no futebol brasileiro. O Flamengo deixou de apenas sonhar e passou a colecionar troféus. Enquanto isso, times que sempre estiveram nas cabeças das tabelas dos campeonatos passaram a sofrer derrocadas dentro e fora de campo, a ponto de serem rebaixados e verem suas finanças se esfacelarem.

SAF tenta mudar correlação de forças no futebol

No entanto, uma mudança ocorrida recentemente pode alterar novamente, e de maneira significativa, a correlação de forças no nosso futebol. Isso, pelo menos, é o que prometem dirigentes e gestores. E é nisso que boa parte das torcidas tenta acreditar.

A chegada do modelo das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), que entrou oficialmente em vigor em 2021, veio acompanhada de notícias envolvendo cifras astronômicas. Para os torcedores de clubes que atravessavam um verdadeiro estado de penúria, os números anunciados (para pagar dívidas ou montar elencos competitivos) ultrapassavam qualquer valor que já tinham visto ou ouvido falar em matéria de investimento esportivo no país.

Alguns clubes se tornaram SAF antes de subirem da Série B para a Série A, caso do Cruzeiro, que tem como principal investidor o ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Outros, como o Bahia, esperaram ter a vaga garantida para definirem a adoção pelo modelo.

Mercado inflacionado

Nestes dias em que o assunto é o início dos Campeonatos Estaduais, é natural que as equipes apresentem seus reforços para a temporada. A “Era SAF” trouxe consigo um aumento considerável na quantidade de transações e no volume investido em contratações, inflacionando a primeira janela de transferências do ano, que ficará aberta até 4 de abril (a segunda terá início em julho).

Os clubes que mais se destacam no momento são justamente os que adotaram essa forma de gestão. Embora ninguém possa garantir que tais investimentos darão retorno em forma de troféus, a verdade é que, com as SAFs, torcedores de muitos clubes que estavam em baixa, atualmente se dão o direito de sonhar, tal como o Ronaldinho Gaúcho de 2011, ou até indo além (e quem sabe conquistando troféus).

Dos times que disputarão a Série A deste ano, os que mais contrataram são justamente os que viraram SAF. Em parte, esse movimento se justifica pela realidade de alguns deles, como o Cruzeiro (líder, com 13 reforços) e o Bahia (11 novos atletas), que subiram para a primeira divisão e precisam melhorar os níveis de seus elencos.

Alguém poderá argumentar que o Goiás, que ainda não se tornou SAF (mas estuda com carinho a possibilidade de seguir esse rumo), fez a mesma quantidade de contratações que o Cruzeiro para esta temporada.

No caso do Goiás, porém, nada menos que seis atletas chegaram por empréstimo, como o meia Alesson, vindo do Vila Nova, ou o ponta-esquerda Diego Gonçalves, que estava no Mirassol, enquanto os outros sete vieram sem custos (nesse tipo de transação, geralmente o outro clube preserva parte dos direitos federativos do jogador e fatura em negociações futuras).

Embalado pelo dinheiro da SAF, o Cruzeiro, por sua vez, fez apenas um empréstimo para esta temporada: Nikão, que estava no São Paulo. Todos os demais vieram de forma definitiva. A Raposa também realizou negociações de custo zero, mas sem deixar de pôr a mão no bolso, como na contratação do atacante Wesley, vindo do Palmeiras, avaliada em R$ 16 milhões.

Palmeiras e Flamengo comedidos

Enquanto os times com SAF e que retornaram à Série A dominam o cenário de contratações neste primeiro momento, nos clubes que estabeleceram hegemonia financeira e de troféus no futebol brasileiro em tempos recentes, como Palmeiras e Flamengo, as portas parecem estar um tanto que fechadas para novos reforços. Ou melhor, entreabertas, aguardando algum negócio imperdível para ser anunciado sem que ninguém espere.

O atual campeão da Copa Libertadores tem apenas dois reforços confirmados para este começo de temporada. Um é Gerson, que retornou à Gávea por € 15 milhões, depois de passar um ano e meio no Olympique de Marselha. O outro é o lateral-esquerdo Ayrton Lucas, que estava no Spartak Moscou, da Rússia, e custou € 7 milhões aos cofres do rubro-negro. Isso sem contar o goleiro argentino Agustín Rossi, que assinou pré-contrato, mas depende da boa vontade do Boca Juniors para ser liberado neste mês de janeiro. Do contrário, estará disponível apenas na metade do ano.

O Palmeiras, por sua vez, sequer anunciou contratações para este ano, optando por promover jogadores da base, como o atacante Jhon Jhon, o zagueiro Kaiky Neves e os laterais Gustavo Garcia e Vanderlan.

A movimentação nos dois clubes em nada lembra o cenário visto há três ou quatro anos, quando ambos costumavam dominar o mercado e abocanhar as melhores opções nas janelas de transferências.

Vasco agressivo nas contratações

Enquanto isso, o Vasco, que passou os últimos anos vagando pelo vale das sombras e da seca, pode enfim se fartar na mesa que para ele foi preparada pelos investidores. Antes de 2022 acabar, o clube já era o que mais havia investido em reforços para a atual temporada, com R$ 43 milhões. Hoje, com oito jogadores anunciados, o time cruz-maltino já soma R$ 86 milhões em reforços.

Os mais caros deles foram o argentino Luca Orellano, contratado junto ao Vélez Sarsfield pelo equivalente a R$ 20,7 milhões; Lucas Piton, que estava no Corinthians e custou R$ 16,5 milhões (a serem pagos de forma parcelada); e Léo, vindo do São Paulo por R$ 16 milhões.

Tendência pode não se manter no restante da temporada

Vale lembrar que essa tendência de investimentos observada no início do ano pode não se manter pelos meses seguintes. Em 2022, o time que iniciou a temporada liderando os gastos com contratações foi o Botafogo (que acabara de concluir o negócio da venda de 90% de sua SAF ao investidor John Textor), com mais de R$ 65 milhões investidos em reforços.

Já na segunda janela de 2022, Flamengo e Palmeiras fizeram valer seu poderio financeiro e, mesmo sem SAF, dominaram o mercado de contratações, com gastos respectivos de R$ 87,5 milhões e R$ 84,2 milhões. No fim das contas, enquanto o primeiro ganhou Copa do Brasil e Libertadores, o segundo faturou mais um Brasileirão, deixando todos os demais clubes sonhando.

Para 2023, aliás, o Botafogo resolveu mudar de postura e ser mais comedido em suas investidas no mercado de contratações. No fim do ano passado, o clube anunciou que planejava trazer apenas quatro reforços para esta temporada.

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