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Copa Libertadores: Conheça a história traumática que faz o Racing rejeitar modelo da SAF

Adversário do Flamengo na semifinais do torneio continental é um dos principais adversários da proposta de implantação das SADs na Argentina

Racing foi salvo da falência, há 25, graças à mobilização dos torcedores - Reprodução / Instagram (@racingclub)

A semifinal da Copa Libertadores 2025 é marcada pela hegemonia dos clubes associativos, frente às Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).

Como já mostrou a Máquina do Esporte, desde que esse modelo foi instituído oficialmente no Brasil, em 2021, numa única ocasião (no ano passado, com o Botafogo) uma equipe que adota esse formato de gestão conseguiu ficar com o título da principal competição de clubes do continente.

Em todas as demais edições, as SAFs ou similares de países vizinhos sequer avançaram à decisão, em um cenário que ainda é marco pelo predomínio de clubes associativos brasileiros (Flamengo e Palmeiras, em especial), que conseguiram equilibrar suas finanças e implantar modelos eficientes de gestão de seu futebol.

Mas a semifinal da Copa Libertadores possui um significado ainda mais simbólico no debate em torno das SAFs.

Um dos clubes que disputam uma vaga na grande final é um exemplo de que, além de nem sempre serem garantia de sucesso, os formatos de gestão baseados em investimento externo podem tomar rumos trágicos para o clube.

Estamos falando do Racing, adversário do Flamengo nesta semifinal e clube que merece um capítulo à parte nessa complexa história que envolve a gestão do futebol sul-americano, marcada ainda pelo amadorismo e por dirigentes que, quando não usam times de massa como trampolim para outros projetos pessoais, deixam-se levar pelos impulsos de torcedor comum, comprometendo a saúde financeira de suas equipes.

Atual campeão da Copa Sul-Americana, neste ano o Racing não tomou conhecimento do Botafogo, que acabara de vencer a Copa Libertadores e a Série A Brasileirão, em 2024. O time argentino derrotou o Glorioso na ida e na volta, pelo mesmo placar de 2 a 0, ficando com o título da Recopa Sul-Americana.

Em tempos recentes, entre os times da nação vizinha, La Academia é quem mais acumula boas participações nas competições internacionais, em um cenário dominado pelas equipes brasileiras, que estão mais estruturadas em termos financeiros. Há 25 anos, porém, a realidade era distinta e o clube alviceleste quase fechou as portas.

Do início glorioso à decadência

Um dos apelidos do Racing é “El Primer Grande”. A alcunha faz referência ao fato de a equipe alviceleste haver sido a primeira, na época do amadorismo, a conquistar sete vezes seguidas o título nacional, de 1913 a 1919.

Primeiro time de futebol da Argentina a ter sido fundado integralmente por jovens nascidos no país (os demais tinham participação de ingleses), o Racing também foi pioneiro entre os os times da nação a ganhar o Mundial Interclubes, em 1967, superando o Celtic, da Escócia, com um elenco que trazia nomes lendários como Cejas, Perfumo e Basile.

De todos os clubes argentinos, o Racing é o mais identificado com o “peronismo”, corrente política que abrange um espectro político bem amplo, mas que carrega algumas características gerais como o discurso nacionalista e a defesa de direitos trabalhistas e sociais.

Seu estádio, construído em 1951, foi batizado justamente de Presidente Perón, em agradecimento a um empréstimo de Arg$ 3 milhões, concedido pelo governo de Juan Domingos Perón e usado na construção da nova estrutura, que chegou a receber 120 mil torcedores na final do Mundial, em 1967. Por conta de seu formado circular bem peculiar, o local ganhou o apelido de El Cilindro.

O Mundial Interclubes acabaria por se converter, porém, numa glória derradeira para La Academia, que ainda conquistaria alguns torneios, durante uma excursão realizada à Europa, em 1968.

A partir de então, a equipe, que adotou o uniforme nas cores da Argentina em homenagem aos 100 anos da Revolução de Maio (evento que resultou na independência do país), entraria em processo de decadência, passando a conviver com um jejum de títulos.

Em 1983, por conta do sistema de média de pontuação que vigorava no Campeonato Argentino, o Racing foi rebaixado à segunda divisão, permanecendo lá até 1985.

Três anos mais tarde, o Racing reviveria um momento de alegria, ao conquistar a antiga Supercopa dos Campeões da Libertadores, derrotando o Cruzeiro na final.

A década seguinte, porém, seria marcada por recorrentes infortúnios para o Racing, que foi se afundando financeiramente, até atingir o estado falimentar, em 1999.

Salvo pela torcida, mas entregue a uma S.A

A agonia do Racing tornou-se pública em 1998, por conta dos excessos ocorridos nas gestões dos ex-presidentes Juan De Stéfano (1987-1995) e Osvaldo Otero (1995-1998).

As administrações foram marcadas por denúncias envolvendo gastos desenfreados e desvios de recursos do clube. A bomba foi cair no colo de Daniel Lalín, que, em 10 de junho de 1998, resolveu apresentar o pedido de falência do Racing, sob o argumento de que a agremiação não tinha condições de honrar as enormes dívidas contraídas.

Em 4 de março de 1999, a síndica responsável por conduzir o processo de falência, pronunciou o atestado de óbito de La Academia: “Racing Club Asociación Civil deixou de existir”.

Mas a história, como bem sabemos, não terminaria naquela sentença. Tal como o Jonas das antigas escrituras bíblicas ou o próprio Cristo do Novo Testamento, o Racing estava predestinado a ressurgir três dias depois, não em decorrência de algum poder divino, mas por conta da fé inabalável de seus torcedores, que pressionaram o Poder Judiciário a fim de evitar a falência, a liquidação de bens e o leilão da sede do clube.

Em 7 de março, eles se reuniram no El Cilindro para exigir que o Racing voltasse a jogar. Ele havia sido eliminado das competições oficiais pela Associação Argentina de Futebol (AFA).

O drama do clube provocou comoção no país. Vale observar que as dificuldades financeiras não eram uma particularidade do time alviceleste. No fim da década de 1990, a Argentina mergulhou em grave crise cambial, que corroeu as bases de sua economia.

As equipes de futebol, que precisam muitas vezes operar em um mercado dolarizado, foram afetadas por essa situação, mergulhando no caos financeiro.

O pedido de falência do Racing levou o Congresso da Argentina a aprovar a chamada “Lei da Confiança”, sancionada pelo então presidente da República Fernando De la Rúa.

Seu nome oficial é “Regime Especial para a Administração de Entidades Desportivas com Dificuldades Econômicas” e ela permite que clubes com falência decretada possam manter suas atividades esportivas, sob a justificativa de se proteger o “desporto como direito social”.

Frequentemente associada ao Racing, a “Lei de Confiança” ajudou a evitar que outras equipes tradicionais do país fechassem as portas, como Talleres e Belgrano.

Mas essa salvação (como não poderia deixar de ser) trazia uma contrapartida: o Racing passaria ser administrado, durante dez anos, por uma empresa privada denominada Blanquiceleste S.A, responsável também pela gestão do El Cilindro.

Empresa privada fracassou

Embora não fosse propriamente uma Sociedade Anônima Desportiva (SAD, modo como as SAFs são denominadas na Argentina e demais países hispânicos), a Blanquiceleste já trazia diversos princípios que norteiam esse modelo privado de gestão.

No começo, a experiência aparentava ser promissora, tanto que, em 2001, o Racing venceu o Apertura, dando fim a um tabu que já durava 35 anos.

Em breve, porém, a torcida do Racing descobriria que a origem do problema não estava no modelo escolhido para se administrar o clube, mas sim na forma como essa gestão ocorria.

A Blanquiceleste S.A logo se afundou em dívidas e passou ela própria a flertar com o estado falimentar. Para agravar a situação, sócios do clube não tinham como influenciar nos rumos da gestão.

No Clausura de 2008, o Racing escapou por pouco de ser rebaixado. A situação tornou-se insustentável, sobretudo depois que torcedores intensificaram protestos, exigindo a saída da empresa e a retomada da democracia no clube.

Em dezembro daquele ano, o juiz Enrique Gorostegui, chefe do Tribunal Nacional de Primeira Instância em Matéria Comercial nº 20, assinou a sentença determinando a suspensão da falência do Racing.

O clube realizou eleições e Roberto Molina foi escolhido presidente. O retorno ao formato de clube associativo foi um processo doloroso, nos primeiros anos. Em breve, porém, o Racing conseguiria se reerguer.

#RacingPositivo

A figura central para a retomada do Racing foi o empresário espanhol naturalizado argentino Víctor Blanco Rodríguez, que presidiu o clube de 2013 a 2024.

Foi durante sua gestão que o time voltou a erguer um troféu, o do Campeonato Argentino de 2014. A conquista foi liderada pelo técnico Diego Cocca, que ao ser apresentado no clube, em junho daquele ano, publicou em seu perfil no Twitter (atual X) a seguinte frase: “Já estamos começando!! Positivo e com muita energia. Obrigado, Racing, pela possibilidade de crescer, belo desafio”.

Torcedores se empolgaram com essas palavras e passaram a utilizar a hashtag #RacingPositivo, que viralizou nas redes da Argentina.

Esse termo “Racing Positivo” acabou se convertendo numa espécie de filosofia oficial das recentes gestões da equipe, buscando superar o passado traumático e enfatizar um olhar otimista em relação a La Academia.

Com Blanco Rodríguez na presidência, o Racing conquistou dois títulos argentinos, duas copas nacionais e voltou a ser campeão internacional, ao vencer a Copa Sul-Americana de 2024. No ano passado, porém, ele e seu grupo foram derrotados pela chapa encabeçada pelo ex-jogador Diego Milito, numa eleição que contou com a participação de mais de 17 mil sócios.

Opositor ferrenho das SADs

Antes mesmo de se eleger presidente da República, em 2023, Javier Milei deu declarações em que defendeu a transformação dos clubes argentinos em SADs.

A situação provocou forte reação por parte da AFA e dos grandes times do país, que publicaram notas rechaçando a ideia.

Uma das declarações mais fortes veio justamente do Racing, que resgatou a experiência traumática com a Blanquiceleste S.A, numa publicação feita nas redes sociais.

“Ninguém tem de nos explicar o que significam as SADs em um clube de futebol. Nossos sócios, sócias e torcedores, que recuperaram a democracia no Racing, sabem bem. Pelo passado, presente e futuro, o Racing ratifica sua condição de associação civil sem fins lucrativos. Tal como está expresso em seu Estatuto Social. O clube é dos sócios e sócias!”, diz o comunicado.

Boa gestão

O bom momento vivido pelo Racing contrasta com o a situação errática enfrentada pelos rivais River Plate e Boca Juniors (que sequer se classificou para a Copa Libertadores deste ano).

“Na Argentina, clubes mais tradicionais, que poderiam ter um enorme valor de marca e elevada performance esportiva, como Boca e River, têm sofrido com gestões amadoras, pouco profissionais. Eles também são afetados pela situação econômica do país, que faz com que o potencial de captação de recursos das equipes seja bem menor que a dos times brasileiros”, pondera Ary Rocco Júnior, professor de gestão esportiva na Escola de Educação Física e Esporte da USP (EEFE-USP) e ex-presidente da Associação Brasileira de Gestão Esportiva (Abragesp).

Na opinião do docente, o futebol atual é marcado pela “era da boa gestão”. “Independentemente de ser SAF ou clube associativo, quem possui boa gestão tem maior probabilidade de vencer”, diz.

Ele avalia, porém, que no futuro as SAFs possam estar mais disseminadas ao redor do planeta, já que teriam “uma maior responsabilização para aqueles que administram as equipes esportivas”.

“O sucesso, no modelo associativo, depende muito de quem é eleito presidente. E, a cada três ou quatro anos, tem de trocar de presidente. Isso cria o risco de um bom gestor não conseguir se reeleger ou não fazer seu sucessor”, pondera o especialista.