Dia da Consciência Negra: No país dos craques pretos, clubes precisam avançar na promoção da igualdade racial

Neste domingo (20), começa a Copa do Mundo 2022, e as atenções de milhões de brasileiros tendem a ficar voltadas para o futebol, esporte que tem entre as suas principais estrelas inúmeros jogadores negros.  

Por obra do acaso, ou melhor, por escolha da Federação Internacional de Futebol (Fifa) para adaptar o evento ao clima do país-sede, o Catar, a data de abertura do Mundial coincidiu com a de uma comemoração que vem ganhando cada vez mais relevância nos debates públicos no Brasil.  

Em 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra, que homenageia a data da morte de Zumbi dos Palmares, ocorrida em 1695. Concebida nos anos 1970, essa comemoração passou a constar nos calendários escolares apenas a partir de 2003. E foi oficializada por lei, de fato, em 2011.  

A crescente mobilização feita pelo movimento negro, porém, tem atraído a atenção da sociedade para esse dia e tudo aquilo que ele representa. No país em que não apenas os craques mas também grande parte dos torcedores são pretos ou pardos, clubes de futebol e patrocinadores costumam aproveitar a efemeridade para compartilhar posts comemorativos ou mesmo de reflexão nas redes sociais. 

No entanto, apesar de romper o silêncio em torno do problema gritante das desigualdades raciais, as medidas concretas dos clubes brasileiros em relação a essa questão ainda são tímidas, na avaliação de Leizer Pereira, palestrante, empreendedor e consultor especialista em estratégias para promoção de diversidade e inclusão nas empresas. Ele é fundador e diretor executivo da Empodera, plataforma que se dedica à construção e aceleração de negócios inclusivos.  

“Hoje em dia, o que vemos, são muitas ações esporádicas, que têm o mérito de dar visibilidade à discussão, mas que não resolvem o problema”, afirmou.  

Racismo estrutural

Muitas pessoas encaram o racismo como uma anomalia social. Pode ser assustador descobrir, porém, que, longe se representar uma disfunção, ele é parte daquilo que a sociedade brasileira define como “normal”.   

Isso porque, segundo os estudiosos do tema, o racismo é um componente estrutural da sociedade, que, nas palavras do filósofo e professor Sílvio de Almeida, acaba por atuar como “uma máquina produtora de desigualdade racial”.  

“O racismo estrutural está em todas as áreas. E o futebol não foge a essa regra”, disse Leizer Pereira.

Para ele, um exemplo prático dessa realidade é a baixa presença de profissionais negros em postos de liderança nos clubes (como dirigentes, gestores e membros de comissões técnicas), em contraposição à imensa participação de jogadores pretos nessas equipes.  

“Isso fica evidente mesmo quando observamos os goleiros. Sílvio de Almeida comentou sobre isso recentemente. O pai dele era goleiro (Barbosinha, que jogou no Corinthians no fim dos anos 1960). Como esse cargo, assim como o de dirigente e de treinador, é visto como de confiança, então quase não vemos negros nessas posições. O racismo estrutural grita no ouvido do negro, a todo instante, que ele é inferior, submisso e sempre vai falhar”, destacou Pereira.  

Recentemente, a baixa presença de treinadores pretos nos clubes brasileiros foi tema de uma campanha da Vivo, estrelada pelo jogador Vinícius Júnior, do Real Madrid e da seleção brasileira. Neste ano, o atleta foi alvo de cânticos racistas entoados por torcedores do Atlético de Madrid, episódio que gerou indignação em todo o mundo.  

Ações práticas

Para Pereira, o futebol pode ser um caminho importante para educar a sociedade brasileira em direção a uma cultura de igualdade. Para isso, porém, é necessário que os times avancem do discurso para a prática.  

“O grande problema, atualmente, é que quem lidera os clubes são, em sua imensa maioria, homens brancos, que não têm compromisso com a questão racial”, ponderou.  

Vasco e Bangu

Na última sexta-feira (18), por exemplo, foi comemorada outra data simbólica para a população negra no Brasil: o Dia Nacional de Combate ao Racismo, que homenageia a Lei Afonso Arinos, de 1951, a primeira a buscar coibir a discriminação baseada na cor da pele.  

Dos clubes brasileiros de maior torcida, apenas o Vasco se manifestou sobre a data. Ao longo das últimas décadas, a equipe tem procurado resgatar e valorizar seu passado de inclusão dos negros nos gramados brasileiros, em especial a chamada “Resposta Histórica”, quando o então presidente do clube, José Augusto Prestes, enviou uma carta à Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea), organizadora do Campeonato Carioca, recusando-se a excluir de seu quadro de associados 12 jogadores negros ou de origem operária. Essa era uma exigência da entidade para que o time pudesse seguir participando da competição. 

Neste ano, o Vasco fez um post alusivo à data, com direito a uma menção aos “Camisas Negras” de 1923 (ano da conquista do primeiro campeonato carioca do time), que também têm sua história resgatada em uma canção de mesmo nome, entoada pelos torcedores no estádio antes dos jogos do clube.  

O Bangu homenageou o Dia Nacional de Combate ao Racismo com uma postagem no Instagram, resgatando um pouco da história de Carregal, considerado o primeiro jogador de futebol negro da história do Brasil. O time alvirrubro ainda recordou do episódio ocorrido em 1907, quando passou dois anos sem disputar o Campeonato Carioca devido à recusa em cumprir a exigência da Liga Metropolitana de excluir dois atletas “de cor” (expressão usada à época).  

Internacional

A ideia de se criar o Dia da Consciência Negra surgiu em 1971, durante uma reunião do Grupo Palmares, em Porto Alegre (RS). Foi o poeta Oliveira Silveira, falecido em 2009, quem propôs a iniciativa, que acabou por se tornar a principal referência de luta e mobilização contra o racismo no Brasil. 

No Rio Grande do Sul, o Mês da Consciência Negra foi inspiração para uma camisa preta do Internacional, lançada pela Adidas em 2021. A iniciativa acabou vencendo, nesta semana, o “Profissionais do Ano”, da Rede Globo, uma das principais premiações do mercado publicitário brasileiro.

Bahia

Com oito em cada dez moradores que se declaram pretos, Salvador (BA) é a maior cidade negra do mundo fora da África. Nos últimos anos, o Bahia tem procurado intensificar suas ações de inclusão racial e de combate ao racismo.  

Além de postar homenagens ao Mês da Consciência Negra, o clube também lançou iniciativas para além do mundo virtual. É o caso da promoção que garantirá, neste domingo (20), entradas gratuitas no Museu do Bahia para pessoas que se autodeclaram pretas.  

O tricolor baiano também relançou seu plano mais popular de sócio-torcedor. Com mensalidades de R$ 49, o “Bermuda e Camiseta” dará acesso garantido para os jogos do time em casa. A condição para participar é possuir renda mensal de até R$ 1,5 mil.  

As iniciativas ainda incluem uma parceria com a rede Vale do Dendê, para fortalecer o afroempreendedorismo e ampliar a divulgação de produtos, serviços e histórias. Além disso, na loja oficial do Bahia, serão vendidas camisas do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Já a parceria com o bloco Olodum fará com que o clube seja divulgado durante a Copa do Mundo no Catar. Por fim, nesta segunda-feira (21), os atletas das categorias de base do time receberão um curso de formação antirracista.  

Educar para a igualdade

Na opinião de Pereira, o esporte pode ser um caminho para transformações na sociedade.

“Imagine o poder que o futebol teria para educar as pessoas, combater o racismo e promover a igualdade em um país como o Brasil”, observou. 

Ele acredita que, como organizações, os clubes precisam se comprometer de fato com a questão racial.

“Primeiramente, é necessário que eles criem programas de igualdade racial. Isso inclui contratar profissionais negros para todas as áreas, especialmente cargos de gestão. Depois, é necessário oferecer formação tanto às pessoas que trabalham no time quanto para os torcedores. Por fim, eles precisam se posicionar de maneira contrária ao racismo, defender e aplicar punições mais duras e apresentar relatórios do trabalho que vem sendo feito contra a discriminação”, finalizou.

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