No dia seguinte a mais um episódio de racismo sofrido pelo atacante brasileiro Vini Jr., crime ocorrido durante a derrota do Real Madrid para o Valencia, por 1 a 0, neste domingo (21), o jornal espanhol Super Deporte, da cidade de Valência, estampou a seguinte manchete: “Vinícius, não provoque”. Na chamada de capa, o periódico ainda se referiu ao caso como “incidente racista lamentável, porém isolado”.
Os “casos isolados” de racismo contra Vinícius Júnior vão se acumulando, diante da complacência das instituições e da omissão das autoridades espanholas, que deveriam trabalhar para coibi-lo. Com o caso de domingo, o atleta brasileiro já soma 11 agressões raciais notórias sofridas desde 2021. Nove delas ocorreram em estádios de futebol.
A primeira agressão sofrida por Vini Jr. foi em outubro de 2021, durante a partida do Barcelona contra o Real Madrid, clube que o atleta defende. À ocasião, a LaLiga chegou a apresentar queixa à Promotoria de Crimes de Ódio da cidade de Barcelona, mas o caso acabou sendo arquivado, pois as autoridades policiais alegaram que não conseguiram identificar os autores das ofensas racistas.
Em março do ano passado, no jogo entre Mallorca e Real Madrid, houve um novo episódio de racismo contra Vini Jr.. O fato chegou a ser denunciado à Promotoria das Ilhas Baleares, mas o Ministério Público decidiu arquivar o caso, sob o argumento de que “a expressão e os sons proferidos, indubitavelmente típicos de atitudes profanas e desprezíveis, ao mesmo tempo vexatórias e absolutamente reprováveis, não parecem abranger inicialmente, para o presente caso, a dimensão penal pública postulada”.
Problema se agrava
O terceiro “caso isolado” que acabou ficando impune deu-se no clássico diante do Atlético de Madrid, em setembro do ano passado. À época, esse episódio, apesar de terminar sem punição aos criminosos, gerou forte repercussão dentro e fora do meio esportivo.
Isso porque ocorreu quase na mesma semana em que o jornalista espanhol Pedro Bravo utilizou a palavra “macaquice” para se referir às danças feitas pelo jogador nas comemorações de seus gols. O ataque racista foi feito ao vivo, no programa de TV Chiringuito Show.
Mais tarde, diante da péssima repercussão do ocorrido, o comentarista resolveu vir a público dizer que as coisas não eram bem assim e que a expressão racista teria sido usada de maneira metafórica, como sendo o equivalente a “coisas estúpidas”. Ele alegou que não pretendia ofender ninguém e pediu desculpas pela forma como se expressou. E, assim, tivemos o quarto “caso isolado” de racismo, em que o agressor escapou das garras da Justiça.
Em relação aos insultos proferidos pelos torcedores do Atlético de Madrid, o Ministério Público optou por novamente arquivar as denúncias.
“Não há ato específico a imputar a determinada pessoa e uma vez contextualizados os insultos de natureza racista, nem constituiriam crime contra a dignidade da pessoa lesada do artigo 510.º, n.º 2, alínea a, do CP. E isto com base no fato de serem desagradáveis, inapropriados e desrespeitosos, uma vez que foram derramados por ocasião da celebração de um jogo de futebol de máxima rivalidade, com outras alusões depreciativas ou zombeteiras marcadas por aquela competição desportiva, juntamente com a sua natureza ao fato de não terem sido reiteradas para além dos dois atos expostos e que duraram poucos segundos”, afirmou, à época, o órgão.
Punições
Empoderados por toda essa omissão das autoridades, torcedores do Valladolid resolveram ter um “caso isolado” para chamar de seu. Em dezembro do ano passado, Vini Jr. foi insultado com termos racistas durante o jogo do Real Madrid contra o clube local. Este, porém, foi um dos poucos casos em que ocorreu alguma punição aos agressores.
A LaLiga apresentou queixas à Comissão Antiviolência, ao Comitê de Competição da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) e ao 4º Tribunal de Justiça de Valladolid. Diversos envolvidos nos insultos racistas foram identificados e sujeitos a multas de € 4 mil.
Além disso, o Valladolid, que pertence ao ex-jogador brasileiro Ronaldo Fenômeno, impôs sanções administrativas aos torcedores identificados pela polícia. Eles estão proibidos de frequentar jogos do clube pelo período de três anos e meio.
Em janeiro deste ano, uma faixa com os dizeres “Madri odeia o Real” foi pendurada em uma ponte da capital espanhola, ao lado de um boneco enforcado, usando o uniforme do jogador brasileiro. Esse sexto “caso isolado” ocorreu às vésperas do clássico contra o Atlético de Madrid, pela Copa do Rei. Por enquanto, as autoridades espanholas ainda tentam identificar o autor da peça ofensiva.
O sétimo episódio aconteceu em fevereiro deste ano, quando um torcedor presente ao Estádio Son Moix, do Mallorca, proferiu insultos racistas contra o atleta brasileiro. Identificado pelas autoridades, ele foi denunciado à Justiça e punido pela Comissão Estatal contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte com uma multa de € 4 mil, além de ficar proibido por 12 meses de frequentar estádios. O próprio time aplicou uma sanção administrativa ao torcedor, que passará três anos sem poder ir a jogos do Mallorca.
Por fim, os “casos isolados” de números 8, 9 e 10 ocorreram entre fevereiro e março deste ano, nas partidas do Real Madrid contra Osasuna, Betis e Barcelona. Até o momento, as denúncias não tiveram uma conclusão, e ninguém foi punido.
O episódio de racismo registrado no jogo do Real Madrid diante do Valencia, neste domingo (21), foi, portanto, o 11º “caso isolado” notório contra o jogador.
Especialista defende menos discurso, mais ação
O especialista Leizer Pereira criticou a falta de ações práticas destinadas a educar a sociedade para a igualdade e também para punir o racismo. Ele é fundador e diretor executivo da Empodera, plataforma que se dedica à construção e aceleração de negócios inclusivos.
“Recentemente, participei de um evento sobre diversidade em Portugal e resolvi ‘esticar’ até Berlim. Eu queria entender como os alemães fizeram a reparação histórica do Holocausto. Ficou claro que a Alemanha assumiu o erro e passou a trabalhar essa questão no nível da educação e também da punição. Será que países como Espanha, Portugal ou Brasil fizeram sua reparação histórica em relação à escravidão, que foi o nosso Holocausto?”, questionou Pereira.
Na avaliação dele, os casos recorrentes de racismo verificados na Espanha não indicam, necessariamente, a ausência de uma legislação capaz de coibir tais práticas, mas sim a falta de disposição das autoridades em fazer cumprir a lei.
“Vini Jr. está há meses denunciando o racismo de que é vítima, mas ninguém faz absolutamente nada. Em uma empresa, se um colaborador procura o canal de denúncias para se queixar de uma agressão sofrida e o gestor permanece inerte diante da situação, ele está cometendo um crime de omissão. Precisamos começar a tratar crime como crime. Queremos ação e não notinhas de desculpas”, afirmou.
No caso específico do Brasil, Pereira gostaria que a repercussão em torno dos episódios envolvendo o craque da seleção pudesse servir de estímulo para que governos, clubes e federações iniciassem um programa nacional de combate ao racismo no futebol.
“Temos times com milhões de torcedores. Nesse sentido, o esporte teria um poder imenso de educar as pessoas para a igualdade e o respeito à diversidade”, finalizou.