Modelo de gestão que tem prevalecido em muitos mercados do futebol mundial, o clube associativo parece ter chegado à sua encruzilhada histórica derradeira, com a notícia de que o Real Madrid, mais rica e poderosa equipe do planeta, poderá aderir ao sistema de Sociedade Anônima Desportiva (SAD), equivalente espanhol às brasileiras Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs).
A proposta que será debatida pelo time merengue não se trata do primeiro golpe sofrido pelos clubes associativos. Nas décadas de 1980 e 1990, países europeus editaram leis que obrigaram as equipes locais a aderirem ao modelo de SADs.
No caso da Espanha, foram poupados dessa regra (que deixou de vigorar em 2022) times como Real Madrid, Barcelona, Osasuna e Athletic Bilbao, que puderam seguir no formato associativo, por razões históricas.
Apesar de serem minoria na Espanha, os dois maiores clubes associativos do país mantiveram ampla hegemonia local, conquistando 28 das 35 edições da LaLiga promovidas desde então.
Se a mudança no modelo do Real Madrid passar, essa realidade pode ser alterada por completo. É fato que, conforme noticiou a Máquina do Esporte, a SAD merengue não seguiria o formato a que estamos acostumados, em que o controle acionário é vendido a um investidor externo.
A ideia da diretoria é entregar até 10% das ações a um parceiro, enquanto os 90% restantes ficariam nas mãos do clube associativo. Não se pode negar, porém, que uma barreira que parecia intransponível está em vias de ser rompida. A partir daí, nada impedirá que esse percentual entregue a acionistas externos cresça.
Considerando-se o mais recente ranking divulgado pela revista Forbes, o Real Madrid possui valor de mercado estimado em US$ 6,75 bilhões. Se essa quantia servir para balizar um eventual aporte na futura SAD, a equipe conseguiria levantar US$ 675 milhões com a venda de 10% de seu capital a um investidor.
Se hoje o Real Madrid já consegue montar times muito competitivos para a disputa de torneios como LaLiga e Champions League, podemos imaginar como seria com seu caixa turbinado nesses termos.
A tendência é que surja um fosso entre o Real Madrid e seu principal concorrente, o associativo Barcelona, que, embora seja uma das equipes que mais faturam no mundo, é também uma das mais endividadas.
Hoje, o time catalão, com seu rombo imenso, e o Bayern de Munique, com seu lucro recorde, representam polos extremos daquilo que ainda pode ser chamado de clube associativo.
Barcelona
O Barcelona atravessa um dos períodos dramáticos de sua história, em termos financeiros. Um recente levantamento elaborado pelo especialista Chris Weatherspoon, do The Athletic, mostra que o time catalão acumula dívidas de € 1,45 bilhão, o que o coloca como o clube mais endividado do mundo.
A crise é resultado de questões relacionadas à gestão (como o pagamento de salários astronômicos a jogadores, ainda durante a “Era Messi”), aliadas à queda nas receitas durante a pandemia da Covid-19.
Em 2021, o Barça já havia encerrado a temporada com um prejuízo recorde, de € 555,4 milhões. Desde então, o problema só se acentuou. Para se ter uma ideia, o clube possui pendências relativas às contratações de atletas como Raphinha, Olmo, Koundé, Vitor Roque, Ferran Torres e Lewandowski.
“O caso do Barcelona ilustra como o sucesso esportivo nem sempre garante o sucesso geral do clube. Se não bem administrado, ou se baseado em objetivos de curto prazo, ou fundeados por recursos muitas vezes superiores à capacidade de pagamento do clube ou inadequados ao seu perfil de geração de caixa, pode gerar uma crise mais adiante. A pandemia acelerou um problema que já existia: uma operação inchada, dependente de receitas imediatas e com pouca margem para imprevistos. Durante anos, o clube priorizou o sucesso em campo com contratações caras e salários elevados”, analisa Moises Assayag, sócio-diretor da Channel Associados e especialista em finanças no esporte.
Para tentar reverter o caos financeiro, o clube tem buscado ampliar suas fontes de receitas, com novos acordos de patrocínio, uso mais intenso atletas formados nas categorias de base e a venda parcial de direitos de mídia e marketing. Tudo isso enquanto tenta se manter competitivo nos cenários espanhol e europeu.
“Isso dá um fôlego a curto prazo, mas não resolve o problema estrutural. A estratégia funciona para manter a competitividade imediata e para alavancar receitas. A ideia dessas parcerias é de multiplicar o volume de receitas de forma a aumentar os ganhos do clube em relação ao modelo atual. Não é uma transação meramente financeira, é uma decisão estratégico-operacional do clube que modifica sua perspectiva de geração de receitas. É algo como se candidatar a partilhar um pedaço menor de um bolo maior, de forma a ter um saldo de ganho positivo em relação ao modelo atual, em que tem 100% de um bolo menor,” comenta Assayag.
Para o especialista, o caminho da recuperação financeira do Barcelona tende a ser longo.
“O Barcelona precisará tomar medidas que equilibrem a conta entre ambição e responsabilidade, entre investimento, custos e capacidade de geração de receitas, com medidas direcionadas a reconstruir sua credibilidade financeira, como, de fato, tem tomado. O clube tem uma marca global muito forte, o que é um ativo poderoso, mas precisará de disciplina e paciência para voltar ao patamar de ganhos e de sustentabilidade financeira e desportiva que já teve”, completa.
Bayern de Munique
Ao mesmo tempo em que o Barcelona está atolado em dívidas, o Bayern de Munique, que também funciona em um modelo, por assim dizer, associativo (na verdade, ele é misto, como será explicado adiante), atravessa uma situação financeira para lá de confortável.
Na temporada 2024/25, o clube alemão registrou lucro de € 187,8 milhões, crescimento de 11,3% em relação ao ciclo anterior. Já receita consolidada ficou em € 978,3 milhões.
O presidente do conselho do Bayern de Munique, Jan-Christian Dreesen, destacou que o resultado é reflexo de uma visão administrativa baseada em estabilidade e responsabilidade financeira, mesmo diante de um mercado de transferências cada vez mais inflacionado.
“Não gastamos mais do que ganhamos; essa postura faz parte da nossa filosofia e continuará a nos guiar nos próximos anos”, explicou o dirigente.
Para Assayag, Bayern é um exemplo de que sucesso esportivo e equilíbrio financeiro podem caminhar juntos.
“O clube mantém uma gestão profissional, que bate as metas planejadas, não gasta mais do que arrecada e tem receitas diversificadas. Isso garante estabilidade mesmo em um mercado inflacionado e intrinsecamente volátil. Importante enfatizar que, culturalmente, o alemão não gosta de variações bruscas, nem para cima, nem para baixo, e procura garantir a estabilidade e a sustentabilidade no longo prazo sobre eventuais ganhos bruscos num determinado ano ou imediatos”, analisa.
O bom momento do clube alemão também se reflete no número de sócios ativos, que é o maior do mundo.
São mais de 432 mil membros, número que supera o Benfica, clube português que era o primeiro da lista e foi o primeiro a atingir a marca de 400 mil sócios.
“O grande número de sócios do Bayern reflete a forma como o clube se conecta com a sua comunidade. Quando há transparência, estabilidade e um sentimento de pertencimento real, o torcedor se engaja. O Bayern não vende apenas um programa de fidelidade, ele oferece participação em um modelo que gera engajamento no torcedor. O sólido vínculo emocional dos sócios do clube garante a base de sustentação no longo prazo que, aliada à eficiência da gestão, sustentam a força comercial do clube e explicam por que ele cresce mesmo em um mercado tão competitivo”, diz.
Na Alemanha, vale lembrar, vigora a regra conhecida como “50+1”, instituída em 1998. Ela permite que clubes vendam parte de seu capital a investidores externos. Para que uma equipe possa competir na Bundesliga, é necessário que a associação controle acima de 50% das ações existentes.
O clube associativo do Bayern de Munique, por exemplo, detém 75% do capital da equipe, enquanto os 25% restantes estão nas mãos de Audi, Adidas e Allianz, cada qual com uma cota de 8,33%.
O modelo de gestão da equipe bávara acaba se afastando daquilo que se observa em times que adotam o formato SAD/SAF ou mesmo o de clube-empresa, em que um grande investidor acaba sendo a única voz que conta, na hora de se tomar decisões.
O Bayern opta por delegar a seus mais de 400 mil associados o poder de definir os rumos do clube. Portanto, apesar de possuir investidores externos, a equipe acaba tendo um caráter mais associativo do que times que funcionam nesse formato, no Brasil.
Qual o futuro dos clubes associativos?
Na avaliação de Assayag, a predominância de clubes associativos entre os grandes do mundo é fruto, sobretudo, de uma relação histórica.
“Até 15 ou 20 anos atrás, praticamente todos seguiam esse modelo e só mais recentemente surgiram novas estruturas jurídicas, como sociedades anônimas, propriedade privada ou arranjos multiclubes, por exemplo. O cenário segue em transformação”, diz.
No Brasil, por exemplo, a Lei das SAFs foi instituída apenas em 2021. Entre os clubes que aderiram ao modelo, o Botafogo foi o primeiro a obter resultados expressivos em campo, com as conquistas da Série A do Brasileirão e da Copa Libertadores, em 2025.
Neste ano, porém, o time vive um momento complicado, foi eliminado nas oitavas de final do torneio continental e viu os rivais Palmeiras e Flamengo, que são clubes associativos, chegarem à mais uma final da competição promovida pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol).
Em meio às indefinições do momento atual, Assayag acredita que ainda existe terreno para que as tradicionais associações consigam fazer frente à forte concorrência das SAFs e SADs.
“Clubes associativos podem, sim, continuar competitivos, porque o modelo jurídico não é determinante para o sucesso. O que realmente faz diferença é a qualidade da gestão. Boas gestões existem em qualquer formato, assim como as más”, pondera.
