Observatório da Discriminação Racial vai de “observador” a protagonista no futebol

Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial, e Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF - Reprodução / Instagram (@observatorioracialfutebol)

No início do ano que vem, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol completará uma década de existência. De iniciativa que dependia exclusivamente do esforço e da dedicação de seus idealizadores para existir, a organização não governamental (ONG) passou, com o tempo, a firmar parcerias, primeiro no universo acadêmico, com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e depois com as próprias organizações que comandam os destinos do esporte mais popular do país.

Prestes a celebrar seu aniversário de 10 anos, não é exagero afirmar que a entidade passou de “observadora” a verdadeira protagonista no futebol brasileiro e sul-americano. Uma voz que se faz ouvir e com cada vez mais contundência.

Na tarde da última terça-feira (21), entre um compromisso e outro na cidade do Rio de Janeiro, onde estava para participar do lançamento da nona edição do Relatório da Discriminação Racial no Futebol, o diretor Marcelo Carvalho concedeu uma entrevista por telefone à Máquina do Esporte, em que comentou a respeito do momento recente vivido pela instituição.

À noite, ele estaria no Maracanã, acompanhado de Ednaldo Rodrigues, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), para o lançamento do documento, que mostra um aumento de 50% no total de casos de racismo nos estádios do país em 2022, na comparação com 2021.

Ao longo do ano passado, foram identificadas 233 ocorrências desse crime, de acordo com o estudo elaborado pelo Observatório. A CBF é parceira da ONG na elaboração.

A data foi escolhida para a apresentação do documento porque é próxima ao Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. E não é que na mesma noite em que os dados do Relatório vieram a público, o Maracanã foi palco de dois outros casos de racismo que certamente estarão presentes na 10ª edição do estudo?

Em um deles, uma funcionária da empresa que presta serviços no estádio foi chamada de “pedaço de macaco” por uma torcedora argentina. A agressora foi encaminhada ao Juizado do Torcedor e dos Grandes Eventos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que decretou sua prisão preventiva por injúria racial.

O outro episódio iniciou-se no estádio, pouco antes do jogo Brasil x Argentina, válido pelas Eliminatórias da Copa do Mundo 2026, mas consumou-se nas redes sociais. De acordo com uma denúncia publicada pelo Observatório da Discriminação Racial, o atacante Rodrygo, do Real Madrid, teve seu perfil no Instagram invadido com inúmeras mensagens racistas, contendo emojis e gifs de bananas e macacos.

“Os insultos digitais tiveram início após uma emissora de TV argentina e o dublador brasileiro Gustavo Machado divulgarem o teor do entrevero entre o jogador e Messi pouco antes do início da partida contra a Argentina, no Maracanã”, afirmou a publicação feita pela ONG, em seu perfil na mesma rede social.

Evolução

Hoje em dia, os levantamentos e denúncias feitos pelo Observatório ganham repercussão imediata nos principais veículos de imprensa do país. Quando o trabalho da entidade começou, porém, havia dificuldade dentro da própria mídia em admitir a existência do problema.

Em 2014, por exemplo, Carvalho se digladiava para tentar convencer as pessoas de que chamar alguém de “macaco” (tal como nos casos registrados neste ano no Maracanã) é crime.

Em abril daquele ano, o programa Sala de Redação, da RBS, debatia a questão de cânticos racistas entoados em estádios pela torcida do Grêmio. Torcedor declarado do Tricolor Gaúcho, o hoje falecido jornalista Paulo Sant’Ana fez a seguinte indagação: “No que lesiona o Tinga alguém chamá-lo [sic] de macaco?”.

Ídolo do rival Internacional, o meia revelado pelo Grêmio havia sofrido ataques racistas, enquanto defendia o Cruzeiro em uma partida realizada no Peru, válida pela Copa Libertadores.

“O seu questionamento(…) é repugnante e mal-intencionado, afinal, é proveniente de um formador de opinião. Além do que, traz consigo a arma mais vil que o sistema usou para perpetuar o racismo até os dias de hoje: o de desqualificar a acusação”, escreveu Marcelo Carvalho, à época.

“Naquela época, nossa luta era para provar que o racismo existia”, lembrou Carvalho.

Na avaliação dele, uma das vitórias do trabalho que tem sido realizado até o momento pode ser avaliada pelo tamanho do debate que existe atualmente acerca do racismo.

“Outro avanço importante é que, quando olhamos para o jornalismo esportivo, podemos constatar a presença cada vez maior de profissionais negros”, destacou.

Parcerias

Desde que a primeira edição do Relatório da Discriminação Racial no Futebol foi lançada, em 2014, o Observatório passou por grandes transformações. Nos anos iniciais, além de elaborar o estudo ao lado de Débora Silveira, o próprio Carvalho ainda era responsável por diagramar o documento.

Atualmente, o Relatório conta com profissionais que cuidam especificamente de cada etapa de sua produção, em especial na parte gráfica. E a repercussão da pesquisa aumenta, ano após ano.

Na medida em que o debate sobre o racismo foi ganhando força no meio esportivo, o Observatório passou a se tornar referência, especialmente com clubes e organizações que desejavam se posicionar a respeito do tema.

E, dessa forma, as notícias sobre parcerias firmadas pela ONG com clubes, entidades e mesmo patrocinadores têm se tornado muito comuns.

Foi o caso, por exemplo, da campanha Barulho Contra o Racismo, feita juntamente da Amstel, patrocinadora oficial da Copa Libertadores, na edição de 2022 do torneio continental. Atualmente, Carvalho não sabe dizer, de cabeça, quantas parcerias o Observatório possui.

“Houve momentos em que chegamos a ter de 13 a 14 clubes, das Séries A e B do Brasileirão, como parceiros para repercutir nossas ações”, afirmou.

De acordo com ele, porém, a maioria dessas parcerias com equipes de futebol não envolvem apoio financeiro ao Observatório.

“No Brasil, ainda existe a dificuldade de entender que, para que o trabalho de combate ao racismo ocorra, é necessário investimento”, ponderou.

Hoje, os dois principais contratos da ONG que envolvem remuneração são firmados com a CBF e a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol).

No caso da entidade brasileira, além do Relatório Anual, a parceria envolve o desenvolvimento de estratégias para a inclusão de pessoas negras em cargos decisórios.

Já o contrato com a Conmebol veio por conta do grande número de casos apontados pelo próprio Relatório da Discriminação Racial no Futebol.

“Além do combate ao racismo, nessa parceria procuramos desenvolver um trabalho de educação e conscientização”, explicou Carvalho.

Novos parceiros e desafios

No mês em que é celebrado o Dia da Consciência Negra, novas parcerias do Observatório foram anunciadas. Uma delas é o Prêmio Diamante Negro, lançado pelo São Paulo nesta semana e que faz referência ao atacante Leônidas da Silva, artilheiro da Copa do Mundo de 1938 e considerado um dos maiores ídolos da história do clube do Morumbi.

A iniciativa homenageará, a partir de 2024, pessoas negras com realizações relevantes nas áreas de cidadania e promoção da igualdade racial.

Outra parceria anunciada neste semestre foi com a fornecedora de materiais esportivos Volt Sport para a produção de camisas do Observatório, trazendo mensagens antirracistas nas estampas.

O Botafogo-SP e a Volt Sport também apresentaram neste mês uma camisa especial, em homenagem ao Dia da Consciência Negra, que terá parte da renda destinada ao Observatório.

Ela traz o escudo do Botafogo-SP e a logomarca da Volt na cor preta, além do selo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol e a frase da campanha “Consciência Negra Todo Dia”.

Apesar de reconhecer que a luta avançou muito nos últimos anos, Carvalho elencou alguns desafios que ainda precisam ser superados.

“Em primeiro lugar, precisamos fazer as pessoas entenderem que a luta contra o racismo não se resume a combater casos isolados. É algo muito maior. Além disso, é fundamental que tenhamos mais pessoas negras ocupando cargos de decisão dentro do futebol”, salientou.

Segundo ele, o Observatório já está preparando a realização de um evento, no ano que vem, para marcar seu aniversário de 10 anos. Por ora, o diretor evitou adiantar detalhes sobre como funcionará a iniciativa.

“Ainda estamos em busca de parceiros para que seja um evento de grande impacto”, declarou.

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